(1946- )
A brasileira Conceição Evaristo nasceu no dia 29 de novembro de 1946 em Belo Horizonte, Minas Gerais. Atualmente reside no Rio de Janeiro, onde mora desde 1973, quando migrou para a capital carioca em busca de uma escola secundária que aceitasse a matrícula de meninas e onde também fundou, em julho de 2023, a Casa Escrevivência. O espaço, embora novo, já é um centro cultural de referência para leitura, difusão e promoção da cultura afro-diaspórica. Sua trajetória acadêmica desde sempre contemplou a educação e a pesquisa, estudou magistério na escola secundária, graduou-se em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é mestra em Literatura Brasileira e doutora em Literatura Comparada pela Universidade Católica do Rio de Janeiro e Universidade Federal Fluminense, respectivamente. Requisitada para palestras acerca das questões de gênero e etnia, a escritora participou também de publicações de ensaios acadêmicos na Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos.
Sua estreia na cena literária foi em 1990, na coletânea de poesia dos Cadernos Negros número 13. Em 2003, publica o romance Ponciá Vicêncio, o qual já está em segunda edição nos Estados Unidos, além das traduções para espanhol e italiano. Em 2006, publica a primeira edição de Becos da memória. Em 2008, lança sua primeira antologia poética, Poemas de recordação e outros movimentos, e, em 2011 e 2015, os contos de Insubmissas lágrimas de mulheres e Olhos d’água, este último granjeando o terceiro lugar no Prêmio Jabuti 2015. Em 2018, publica seu último romance Canção para ninar menino grande.
O traço poético é uma característica marcante da autora, que possui uma escrita lírica e social, com uma narrativa fortemente contestatória e em constante diálogo com os elementos diaspóricos presentes na cultura brasileira. A linguagem concisa, marcada pela densidade com que narra os curtos capítulos de seus livros ou contos, fortalece as imagens poéticas num movimento que sai do particular para o geral, valendo-se das repetições e neologismos para alargar os sentidos, reparar a memória, na constante busca de resistência ou denúncia da marginalização do povo afro-brasileiro. A preocupação com a alteridade está na base de uma narrativa em que a voz feminina é latente. Mulheres silenciadas ou não escutadas que refletem no corpo do texto as fraturas sofridas ao longo da história do país, ora de resistência, ora de resignação. Dentre sua bibliografia, destacam-se dois textos em que a temática da diáspora se faz efetivamente presente: o poema “Vozes mulheres” (2008: 10), e o romance Ponciá Vicêncio, de 2003.
O emblemático poema “Vozes mulheres” evoca momentos que remontam a uma outra perspectiva sobre as mulheres subalternizadas, diferente dos estereótipos criados ora pelo historicismo, ora pela sociedade escravista. Os primeiros versos nos remetem ao momento da escravidão e invocam o navio negreiro, símbolo do sofrimento e resistência do povo negro africano. O poema invoca a bisavó, cuja voz ecoa ainda baixo nos porões do navio negreiro para denunciar a violência imposta aos africanos ali presentes na imagem da criança que teve a infância roubada ao ser retirada de sua terra. A voz que ecoa baixinho, invocada no primeiro verso, permanece ao longo das seis estrofes e se fortalece à medida em que a história avança. Dessa forma, bisavó, avó, mãe e filha estão representadas no poema como o corpo da mulher negra que resiste ao tempo e às injustiças impostas por uma sociedade escravagista e racista.
Não é por acaso que o poema se tornou um marco da literatura afro-brasileira, os versos tecidos pela autora apresentam a perspectiva da escrevivência, conceito importante para os estudos diaspóricos brasileiros utilizado pela própria autora em seus textos críticos. O termo se refere a uma escrita literária capaz de traduzir poeticamente a experiência da identidade afro-brasileira, desde a diáspora africana até os dias atuais. Nesse sentido, o texto aborda dois aspectos importantes dessa cultura, a ancestralidade e a resistência. O pronome possessivo [minha] presente ao longo do poema reforça a ideia de pertencimento a uma cultura ancestral e une as duas pontas dessa trajetória. De um lado, a bisavó africana, o tumbeiro, o passado como chaga e, de outro, a bisneta, o presente letrado, a memória diaspórica e a liberdade.
A imagem do navio negreiro é uma alegoria recorrente na literatura abolicionista afrodescendente como marco histórico do encontro das culturas presentes na formação da cultura brasileira. Não raro, é descrito por poetas e ficcionistas para invocar o passado e a violência a que os escravizados foram submetidos. A subjetividade coletiva evocada, chamada aqui de escrevivência, está, evidentemente, associada à memória afrodescendente subjugada aos vícios do processo de escravidão do período colonial, simbolizada pelo navio. É nela que o leitor pode perceber a tomada de consciência crescente do povo negro marcada pelas palavras “lamento”, “obediência” e “revolta”.
Outro texto que também reverbera os ecos da cultura diaspórica é o romance Ponciá Vicêncio (2003). O enredo do romance traça o percurso de uma mulher negra e sua trajetória desde a pequena cidade povoada por ex-escravizados até suas desventuras em uma cidade grande. A protagonista nasce em Vila Vicêncio, que concentra, no interior do Brasil, uma população descendente de escravizados. Seu pai e seu irmão trabalham na lavoura para a família Vicêncio, dona das terras e do sobrenome de seus habitantes, como a família de Ponciá. Narrada em terceira pessoa, a história acompanha as reminiscências da personagem central de maneira fragmentada e, através de flashbacks, reconstrói a infância da menina artesã que junto da mãe e da avó faziam esculturas de barro. A protagonista que dá nome ao livro experimenta as agruras da vida urbana que, longe da mãe e do irmão, descobre a conexão com a ancestralidade e a memória como rota de fuga para o abismo que separa as pessoas nas grandes metrópoles.
A obra dialoga com a crítica decolonial, na perspectiva de Catherine Walsh (2017) por encontrar meios de valorização da memória coletiva, da ressignificação da cultura diaspórica e de novos modos de pensar, problematizando a lógica colonialista que ainda existe.
Tal aspecto pode ser reconhecido na medida em que a narradora descreve a viagem de Ponciá e sua experiência na cidade grande de maneira análoga à experiência da travessia do Atlântico pelos povos africanos, como a biografia de Mahommah Baquaqua relata. O romance de Evaristo concorre também para uma melhor percepção daquilo que os estudos críticos afrodescendentes consideram como uma diáspora metafórica, pois o termo, caro à literatura afro-brasileira contemporânea, nas palavras de Nei Lopes, na Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, “serve também para designar, por extensão de sentido, os descendentes de africanos nas Américas e na Europa e o rico patrimônio cultural que construíram” (2004: 236).
Os autores afro-brasileiros confirmam esse novo pensamento sobre a diáspora negra e trazem para sua literatura marcas dessa memória coletiva e o navio negreiro pode ser considerado uma delas. O tumbeiro seria uma insígnia da mediação do sofrimento do povo africano, ou objeto de reflexão sobre a diáspora, bem como Evaristo descreve ao narrar a travessia de sua protagonista até a capital em busca de melhores condições. Ao perder o pai, Ponciá decide migrar para a cidade grande. A sofrida viagem de trem se assemelha às narrativas de testemunho sobre a travessia do Atlântico, recuperadas do período colonial, mas a crença de que poderia ter uma vida mais confortável ainda a impulsiona a seguir adiante. Os dias de sofrimento se estendem à chegada ao centro da cidade. Sem referência e sem dinheiro, a protagonista dorme uma noite na porta da igreja e somente alguns dias depois ela consegue um emprego como doméstica. Ao contrário do que imaginava, o sofrimento persiste e as condições de trabalho análogas à escravidão deixam Ponciá cada vez mais distante do sonho de ter uma vida melhor, de buscar a mãe e o irmão para viverem juntos na cidade grande.
A linguagem concisa e densa de sentido pode ser lida como um brutalismo poético, segundo o crítico Eduardo de Assis (2021, Portal Literafro), pois ao mesclar cenas de violência e sentimento, de realismo cru e ternura, além de impactar o leitor, revela o compromisso e a identificação da intelectual com o que ela chama escrevivência (2005: 208-210) pois retrata a experiência da comunidade afrodescendente, valorizando-a em seus diversos aspectos.
Na perspectiva dos estudos diaspóricos, as obras de Evaristo revelam o movimento de busca, presente na vida da própria autora. As viagens como possibilidade de conhecimento são tema recorrente na literatura universal, mas o que se percebe nestas viagens de autoria afro-brasileira é mais amplo, pois está conectado com a busca também pelo pertencimento. Segundo a pesquisadora Aline Arruda (2007: 46), a viagem de Ponciá não se configura como uma aventura, pois ela precisa sair do seu lugar de origem em busca de melhores condições de vida, entretanto, esse movimento desencadeia uma necessidade de encontro das próprias origens, remontando a ideia de que deves olhar para trás se não souberes para onde ir. Dessa forma, ao se ver perdida na cidade grande, Ponciá entende que sua procura não tem como base somente as questões econômicas, mas também a busca pela força de sua ancestralidade. Fora de casa, a personagem sente falta de elementos que compunham sua experiência de vida e sua identidade, o barro que modelava com sua mãe, por exemplo, e suas mãos sangram pela distância criada entre ela os seus familiares.
É também fora de casa que Ponciá grita pelo seu nome e sobrenome, tentando encontrar um eco de identificação, em vão, sente que sua loucura resgata a memória do avô, que na vila Vicêncio, ainda escravo, num momento de surto e tremenda indignação diante da escravidão que ainda perdurava, mata a esposa e se mutila, cortando o próprio braço. E é esse braço cotó que Ponciá imita desde pequena. É também esse inconformismo do avô que ela carrega e a vida fora do campo não lhe fornece respostas. Repetir o nome Vicêncio é reconhecer o quanto ainda há da memória da escravidão naquele povo, eles carregam no sobrenome a marca da exploração e Ponciá carrega em seu corpo a revolta do avô. Em suas desventuras, Ponciá descobre que seu lugar é junto da ancestralidade, da avó, do avô, das águas de Oxum e da dualidade de Oxumaré, orixá que representa o feminino e o masculino. Ao se afastar da Vila Vicêncio, a protagonista entende que é preciso romper com as amarras da escravidão, desviar-se da relação de posse com os donos da Vila e restabelecer os laços com sua origem. Dessa forma, o regresso para sua terra simboliza, agora, também, o retorno às raízes e a conexão com a cultura africana, herança diaspórica.
Citações
Vozes Mulheres
A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade.
(Poemas de recordação e outros movimentos: 24-25)
Quando Ponciá Vicêncio resolveu sair do povoado onde nascera, a decisão chegou forte e repentina. Estava cansada de tudo ali. De trabalhar o barro com a mãe, de ir e vir às terras dos brancos e voltar de mãos vazias. De ver a terra dos negros coberta de plantações, cuidadas pelas mulheres e crianças, pois os homens gastavam a vida trabalhando nas terras dos senhores, e depois a maior parte das colheitas ser entregue aos coronéis. Cansada da luta insana, sem glória, a que todos se entregavam para amanhecer cada dia mais pobres, enquanto alguns conseguiam enriquecer-se a todo o dia. Ela acreditava que poderia traçar outros caminhos, inventar uma vida nova. E avançando sobre o futuro, Ponciá partiu no trem do outro dia, pois tão cedo a máquina não voltaria ao povoado. Nem tempo de se despedir do irmão teve. E agora, ali deitada de olhos arregalados, penetrados no nada, perguntava-se se valera a pena ter deixado a sua terra. O que acontecera com os sonhos tão certos de uma vida melhor? Não eram somente sonhos, eram certezas! Certezas que haviam sido esvaziadas no momento em que perdera o contato com os seus. E agora feito morta-viva, vivia. (Ponciá Vicêncio: 32-33)
O inspirado coração de Ponciá ditava futuros sucessos para a vida da moça. A crença era o único bem que ela havia trazido para enfrentar uma viagem que durou três dias e três noites. Apesar do desconforto, da fome, da broa de fubá que acabara ainda no primeiro dia, do café ralo guardado na garrafinha, dos pedaços de rapadura que apenas lambia, sem ao menos chupar, para que eles durassem até ao final do trajeto, ela trazia a esperança como bilhete de passagem. Haveria, sim, de traçar o seu destino (Ponciá Vicêncio: 35).
Bibliografia Ativa Selecionada
Evaristo, Conceição (2003), Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte, Mazza.
— (2005), Gênero e etnia: uma escre(vivência) da dupla face. Moreira, Nadilza Martins de Barros; Schneider, Diane (Orgs.). Mulheres no mundo, etnia, marginalidade e diáspora. João Pessoa, Ideia: 201-212.
— (2006), Becos da memória. Belo Horizonte, Mazza.
— (2007), ¨Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita¨. In: Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Marcos Antônio Alexandre (org). Belo Horizonte, Mazza: 16-21.
— (2008), Poemas da recordação e outros movimentos. Belo Horizonte, Nandyala.
— (2022), Canção para ninar menino grande. Rio de Janeiro, Pallas.
Bibliografia Crítica Selecionada
Arruda, Aline Alves (2007), Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo: um bildungsroman feminino e negro. Dissertação de mestrado em Teoria da Literatura. Belo Horizonte: departamento de letras, UFMG. Consultável em: http://hdl.handle.net/1843/ECAP-76RF2H
Baquaqua, Mahommah Gardo (2017), Biografia de Mahommah Gardo Baquaqua, um Nativo de Zoogoo, no interior da África. São Paulo, Editora Uirapuru.
Côrtes, Cristiane (2017), As pontas de uma estrela: poéticas do silêncio em Macabéa e Ponciá. Tese de doutorado em literatura comparada. Belo Horizonte: departamento de letras, UFMG.
Consultável em: http://hdl.handle.net/1843/LETR-ATBPKJ
Duarte, Eduardo Assis/ Lopes, Elisangela (2021), ¨Conceição Evaristo: literatura e identidade¨. Portal Literafro. Consultável em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/29-critica-de-autores-feminios/199-conceicao-evaristo-literatura-e-identidade-critica
Duarte, Constância Lima/ Côrtes, Cristiane/ Pereira, Maria do Rosário Alves (orgs) (2023), Escrevivências: identidade, gênero e violência na obra de Conceição Evaristo. 3ª. ed. Rio de Janeiro, Editora Malê.
Duarte, Constância Lima/ Nunes, Isabella Rosado. Ilustrações Goya Lopes (2020), Escrevivência: a escrita de nós – reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Rio de Janeiro, Mina Comunicação e Arte. Consultável em: https://www.itausocial.org.br/wp-content/uploads/2021/04/escrevivencia-a-escrita-de-nos-conceicao-evaristo.pdf.
enciclopédia itaú cultural> conceição evaristo. https://www.itaucultural.org.br/ocupacao/conceicao-evaristo/
Gomes, Heloisa Toller (2023), ¨A herança afro-brasileira em suas vozes: dos longes da senzala à fala e ato de agora¨. Portal Literafro. Consultável em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/11-textos-dos-autores/1764-heloisa-toller-gomes-a-heranca-afro-brasileira-em-suas-vozes-dos-longes-da-senzala-a-fala-e-ato-de-agora-2
Lopes, Nei (2004), Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São Paulo, Selo Negro.
Walsh, Catherine (2017), Entretejiendo lo pedagógico y lo decolonial: luchas, caminos y siembras de reflexión-acción para resistir, (re)existir y (re)vivir. Alternativas. Consultável em: https://alternativas.osu.edu/en/ebooks/catalog/new-ebook.html
Portal Literafro: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/188-conceicao-evaristo
Autor(a): Cristiane Côrtes | Lattes