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Djaimilia Pereira de Almeida

Passagens:

(1982- )

Nascida em Angola, Djaimilia Pereira de Almeida veio para Portugal com tenra idade, para viver com a família paterna nos subúrbios de Lisboa. Após uma formação literária que a levaria até ao doutoramento em Teoria da Literatura, completado em 2012, Djaimilia Pereira de Almeida admite ter necessitado de algum tempo para desbloquear do emudecimento que lhe provocara a escrita académica (Lança 2015) e para retomar em pleno o seu sonho de infância de ser escritora. Em menos de uma década, urdiu uma obra já extensa, muito consistente a nível estético e relevante em termos culturais, que a crítica literária, tanto nacional como estrangeira, tem sobejamente reconhecido, analisado e premiado.

Atenta às problemáticas identitárias exponenciadas pelas migrações na contemporaneidade, e sobre as quais as ciências e os estudos culturais têm profusamente discorrido nas últimas décadas, a autora tem, contudo, sabido manter-se fiel à autonomia do seu campo de atuação discursiva, focando-se nos meandros da interioridade de seres cujas existências foram e continuam marcadas pela diáspora negra.

A hibridez do primeiro livro, Esse cabelo (2015), – entre o romance e o ensaio (auto)ficcional – deixava já antever alguns dos traços do seu universo afrodescendente (pós-)colonial retomado e prolongado nos textos ficcionais ou ensaísticos posteriores. A relação da jovem Mila com o seu cabelo crespo configurava-se como metáfora central tanto da autoconsciência gradativa da diferença numa terra maioritariamente de brancos, como de um racismo estrutural, calado ou interdito, da comunidade, a começar pela própria família.

Recentemente, já órfã de pai e, por conseguinte, “mais capaz de respirar”, tal como repete a longa litania inserida em Os Gestos (Almeida 2021: 71), Djaimilia Pereira de Almeida declarou que esse primeiro livro tinha significado (também) um gesto de afirmação perante a figura paterna (2023:18), que sempre recusara reconhecer, e muito menos valorizar, a diferença de cor de pele da filha. O ambiente familiar, metonímia da invisibilidade social dos negros em contextos de normalidade no Portugal das duas últimas décadas do século passado, terá pois contribuído, em grande medida, para que ela mesma tivesse chegado atrasada à sua própria pele, razão pela qual afirmará que “ A [sua] vida em Portugal como uma pessoa negra foi por muito tempo essa carreira de teimosia, privilégio e esquecimento” (2019:106).

Esse primeiro enfoque nas memórias de uma jovem afrodescendente, onde subtilmente se deixavam adivinhar alguns traços autobiográficos, iria polarizar-se em seguida nas existências de outros seres enquanto figuras emergentes de uma escrita de finos recortes de humanidade, onde sobressaem a sensibilidade e o simbolismo poéticos. É justamente nesse sentido que a obra de Almeida se tem revelado e imposto como expressivo caleidoscópio dos trânsitos, maioritariamente forçados, entre Portugal e África, seja durante o período colonial, seja aquando dos refluxos da descolonização e das independências. Dessa galeria de figuras singulares, fazem parte Cartola e Aquiles do romance Luanda, Lisboa e Paraíso (2018), pai e filho deslocados em Lisboa, numa busca dupla de tratamento médico para Aquiles e de reconhecimento sociopolítico para Cartola, mas que, afinal, resulta em abrigo precário e sem retorno, com os dois homens condenados a um quotidiano nas margens, à solidão e ao desequilíbrio psíquico, vergados designadamente a um forte sentimento de fratura interna. Dessa espécie de dilaceração irá também sofrer Justina, em apenas dois meses de visita à morada incerta, um fora do lugar designado, por antífrase, Paraíso, onde sobrevivem, clandestinos, pai e irmão, bem como outros imigrantes, como é o caso do galego Pepe.

Por sua vez, Filomena e Solange, as duas personagens de As Telefones (2020), que de certo modo nascem de uma “Aula de Culinária”, publicada em 2017 na revista Granta, irão dar literalmente voz a uma relação entre mãe e filha vivida à distância, a primeira a morar em Luanda, a segunda em Lisboa. O contacto telefónico entre as duas, assente numa comunicação fundamentalmente fática, ainda que durante vários anos regular, torna-se propício a projeções imaginárias recíprocas, diante das quais os raros encontros presenciais entre ambas, de um lado ou do outro do Atlântico, buscam ser de algum modo redentores, raramente sem grande sucesso (Almeida 2020: 78)

Em Maremoto (2021), o protagonista, por intermitências narrador, Boa Morte da Silva, um arrumador de carros nativo de Evale (Angola), antigo combatente na Guiné junto das tropas portuguesas, e Fatinha, uma sem-abrigo de origens são-tomenses, mas nascida em Portugal, constituem o núcleo central de uma novela em torno dos “invisíveis do Chiado”, aqueles de quem a voz narrativa de Luanda, Lisboa, Paraíso dirá que vivem “dissimulados no lugar escuro onde os narradores não chegam nem para se regozijarem do facto de terem visto o que mais ninguém viu nem para dizerem que ninguém lá entra.” (Almeida 1998: 173). Não é, todavia, esse o caso das vozes narrativas de Djaimilia Pereira de Almeida que, muito pelo contrário, não hesitam explorar as mais ínfimas pregas de vidas tresmalhadas ou alienadas pelo “cosmopolitismo de pobre” (Santiago 2004) que grassa no mundo pós-colonial, gerido cinicamente por um capitalismo global.

Boa Morte da Silva, por exemplo, incarna uma das vozes do maremoto provocado pelo cataclismo entre placas tectónicas do colonialismo, da guerra colonial / de libertação nacional, rende-se à sua existência póstuma de fantasma; deixa de apostar numa ligação (ainda que apenas sonhada e escrita) com o outro lado do Atlântico e procura romper de vez com o ciclo da dor do desenraizamento e da marginalidade, sobretudo porque dele pretende resgatar a filha Aurora: “Vou cegar minha dor para a minha dor não te encontrar, que sejas alguém” (Almeida, 2021: 105).
Todas estas ficções conferem visibilidade e legitimação simbólica à variedade de existências e à complexidade de subjetividades que as memórias histórica e cultural canónicas, com o seu tradicional darwinismo, tendem a esquecer ou a estereotipar. Daí que sejam narrativas que tanto emergem de uma memória polifónica, como a potenciam e valorizam, revelando ser, por isso mesmo, peças fundamentais de um “processo de historização contra-hegemónico” (Rendeiro 2023: 125).

Escritora com elevada capacidade de autorreflexão, e nessa exata medida empenhada na organicidade do seu projeto literário em curso, Djaimilia Pereira de Almeida reuniu num simbólico memorial Três Histórias do Esquecimento (2021), talvez em homenagem (in)consciente ao tríptico de contos do seu muito estimado Gustave Flaubert – não apenas a novela sobre Boa Morte da Silva, como também duas outras histórias de personagens brevemente esboçadas em textos de Raul Brandão e de Eça de Queiróz. Do primeiro, respigou a figura do capitão Celestino cuja sombra paira sobre a Foz do Douro d’Os Pescadores, para nele perscrutar o mistério, as contradições e os fantasmas de um antigo responsável de navio negreiro que, uma vez regressado à terra natal, retirado do mundo, e rendido ao cuidado extremoso da beleza do seu jardim, parece conviver de consciência tranquila com o seu passado de cúmplice do esclavagismo. Em Bruma, resgata “o velho escudeiro preto, grande leitor da literatura de cordel” e de “contos de tristes das águas do mar” da infância de Eça Queiroz, muito brevemente invocada no célebre texto sobre “O «Francesismo»”, e prolonga-lhe a existência narrativa, homenageando a sua cultura literária de autodidata e a sua dignidade humana, indagando a sua interioridade de desterrado da Bahia natal, tudo em contramão da invisibilidade geral, ou da amnésia estrutural” (Connerton 2008) de indivíduos negros na sociedade e literatura portuguesa oitocentistas.

Sendo inegável o substrato diaspórico na escrita de Djaimilia Pereira de Almeida, com os seus códigos de sensibilidade e de inteligibilidade próprios, importa salientar que, neste universo literário, a diáspora nunca se configura como desterritorialização de uma comunidade anónima, tão-pouco se conforma a identidades coletivizadas ou a generalizações.

Esta artesã de palavras restituidoras da interioridade (Almeida 2023: 71), atualmente também professora da New York University, está muito mais interessada em revelar os mais complexos e íntimos filamentos desses silêncios e interditos, por mais que as complexidades reveladas possam porventura ir ao arrepio de expectativas ou de conveniências alheias. Nesse sentido, os finais em aberto e altamente simbólicos das histórias de Cartola, de Boa Morte da Silva ou do Capitão Celestino, não fecham possibilidades de leitura nem das suas condições nem dos seus destinos. Não se trata de uma qualquer incapacidade narrativa, nem tão-pouco, e a montante, de uma indefinição autoral, mas de coerência diante de figuras e existências complexas que, não apenas escapam à bidimensionalidade fotográfica, à tipificação e ao comunitarismo, como questionam as categorias e polaridades identitárias próprias de outros discursos sobre os migrantes e/ou exilados (pós-) coloniais, e que movem muitas das ações políticas a esse respeito.

A despeito de generalizações e apropriações alheias da sua própria condição de afrodescendente, a opção pela individualidade e pela liberdade interior da escritora enquanto tal, faz sobressair o quanto Djaimilia Pereira de Almeida está consciente da sua condição de escritora negra, não por efeito de agenda política, mas por respeito à integridade do seu próprio ser (“sou negra, e escrevo o que sou, quem sou. Escrevo livros. Penso livros. É o mesmo ofício. Se os meus livros não podem ser melhores do que sou, também não podem não ser da minha cor” (Almeida 2023: 34). Isso significa que a negritude da autora não funciona aqui como declaração de princípio, nem se resume a um identidade civil, resulta da sua condição e consciência diaspóricas de mulher negra deslocada das suas origens africanas, uma consciência que foi brotando da sua própria escrita (idem: 42), razão pela qual a autora pode declarar, sem retórica de circunstância, “Escrever deu-me um lugar na minha pele. (…) Sou uma mulher negra em livros. Eles são a minha defesa do mundo” (idem: 26), ou de autossatisfação, como de quem já tivesse chegado ao destino, ou de como se o conhecesse de antemão: “ A minha negritude não é terra firme, porto de abrigo. Joga-se na página – campo minado” (idem: 42).

 

Citações

“Descendo de gerações de alienados, o que talvez seja sinal de que o que se passa por dentro das cabeças dos meus antepassados é mais importante do que se tem passado por fora. A família a quem devo este cabelo descreveu o caminho entre Portugal e Angola com navios e aviões, ao longo de quatro gerações, com um à-vontade de passageiro frequente, que todavia, não sobreviveu em mim (…)” (Esse Cabelo: 15-16)

“Que preferível seria um cosmopolitismo autêntico a um paroquial cheiro de senhora, vestígio do cruzamento das vidas de um comerciante português errante pelo Congo, um pescador albino de M’banza Kongo, católicas anciãs de Seia, cristão-novos maçons de Castelo Branco, meus ancestrais?” (Esse Cabelo: 34)

“Não fora por descuido que não tinham desfeito as malas. Fora por esperança. Sabiam não ter ainda chegado ao destino. Da noite para o dia, Justina forçava-os a um desembarque, sem se aperceber que sete anos depois a bagagem deles ainda não tinha chegado a Lisboa” (Lisboa, Luanda, Paraíso: 127)

“A história empurrou-os para uma margem sem que dessem conta de que tinham chegado a terra. Postos de parte, não tinham nem a dignidade dos espoliados nem a honradez redentora dos desgraçados” (Lisboa, Luanda, Paraíso: 173)

(…) o mundo transportado pelo seu corpo antigo vergara-se à tristeza de não saber bem que terra pisava, como se, uma vez aportado, tivesse perdido o norte.” (A Visão das Plantas: 57)

“Filomena e Solange: continentes separados pelas águas que os unem. E os enganos, afinal, nada de especial” (As Telefones: 41)

“Portugal, como te explicar a ti que essa é minha terra, filha, sem ferir o teu coração? Terra dum homem é a terra que ele cava, terra pela qual um homem mata, e eu matei por Portugal antes de conhecer as ruas de Lisboa” (Maremoto: 67)

“Se tua mãe tem razão, meu posto está equivocado e estou condenado a ele. Que pátria terei, se não meu Portugal e minha gente? Que outra pátria será minha, se não essa minha ilusão?” (Maremoto: 72)

“No discurso sobre formas de desenraizamento na diáspora sobrepõe-se por vezes o que pareceria ser uma forma íntima de cegueira aspectual com o carácter decisivo daquilo que a cor da pele de uma pessoa comporta, apelando-se então a modos de racismo entre iguais e a diferenças e a semelhanças físicas para as quais qualquer criança de cinco anos saberia apontar.” (Pintado com o Pé: 105)

 

Bibliowebgrafia Ativa Selecionada

Almeida, Djaimilia Pereira (2015), Esse Cabelo. Lisboa, Teorema.
— (2017), “Aula de Culinária”, Granta – Portugal, 9, Lisboa, Tinta da China Edições: 227-235
— (2018), Lisboa, Luanda, Paraíso. Lisboa, Companhia das Letras -Penguin Random House.
— (2019), A Visão das Plantas. Lisboa, Relógio d’Água Editores.
— (2019), Pintado com o Pé. Lisboa, Relógio d’Água Editores.
— (2020), As Telefones. Lisboa , Relógio d’Água Editores.
— (2021), Maremoto. Lisboa, Relógio d’Água Editores.
— (2021), “Um momento com Djaimilia Pereira de Almeida” , disponível em https://www.media.cecs.uminho.pt/video/8N3/-um-momento-com-djaimilia-pereira-de-almeida-/
— (2022), Três Histórias de Esquecimento. Lisboa, Relógio d’Água Editores.
— (2023), O que é ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo. Lisboa, Companhia das Letras – Penguin Random House

 

Bibliowebgrafia Crítica Selecionada

Connerton, Paul (2008), “Seven types of forgetting”, Memories Studies 1 (1), pp.59-71.

Coutinho, Ana Paula Coutinho (2022), “Vozes Migrantes do Exílio Pós-colonial: Para uma Leitura Transversal de Djaimilia Pereira de Almeida”, Mulemba. Rio de Janeiro: UFRJ | Volume 14 | Número 27 | jul.-dez. 2022: 121 – 137

Khan, S. (2022), “Saudade, solidão e silêncio em Luanda, Lisboa, Paraíso de Djaimilia Pereira de Almeida e em Reino Transcendente de Yaa Gyasi”. In S. Sousa & N. A. Can (Eds.), Africas in the world and the world in the Africas. African literatures and comparativism, QuodManet: 229–252.

Lança, Marta (2015), “Grande Entrevista a Djaimilia Pereira de Almeida” in http://www.redeangola.info/especiais/85033-2/Rede Angola [consultado em 20 de dezembro de 2023]

Paulino, Silvia Campos; Paulino, Simona Campos ( 2019), “Trançando identidades: o cabelo da mulher negra em Esse cabelo de Djaimilia Pereira de Almeida e Americanah de Chimamanda Ngozi Adichie”,   Redoc. Rio de Janeiro v. 3 n.3 Set/Dez 2019: 216-231.

Rendeiro, Margarida (2023), “Memória Histórica, Literatura e Rasura: Escrita Reparativa em Três Histórias do Esquecimento (2021)”, in Sheila Khan e Sandra Sousa (Eds), Djaimilia Pereira de Almeida. Tecelã de Mundos Passados e Presentes. CECS-UMinho Editora: 124-149.

Santiago, Silviano (2004). O Cosmopolitismo do Pobre. Crítica literária e Crítica Cultural. Belo Horizonte, Editora UFMG.

Autor(a): Ana Paula Coutinho | Ciencia Vitae


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Ana Paula Coutinho, "Djaimilia Pereira de Almeida", Diásporas em Português, ISBN 978-989-35462-0-8, 16 de Janeiro, 2024, https://diasporasemportugues.ilcml.com/glossary/djaimilia-pereira-de-almeida/

Verbetes de Ana Paula Coutinho: Djaimilia Pereira de Almeida, Ricardo Adolfo,