(1945 - )
Nascida em Moura (Portugal), Fernanda Dias viveu a experiência da emigração, primeiro em França e desde 1986 até 2005 em Macau, território onde leccionou e esteve ligada à Oficina de Gravura da Academia de Artes Visuais, tendo participado em várias exposições internacionais de pintura e gravura. Posteriormente, em 2017, concluiu o Mestrado em Comunicação, Cultura e Artes na Universidade do Algarve.
Macau é o espaço que impregna a obra de Fernanda Dias, integralmente publicada nesse território, constituída maioritariamente por poesia. De entre os títulos publicados importa referir: Mapa Esquivo (2016), Contos da água e do vento (2013); Poemas de uma monografia de Macau (2004); O Sol, a Lua e a via do fio de seda—uma leitura do Yi Jing (2011); Chá verde (2002); Rio de Erhu (1999), Dias da Prosperidade, contos, (1998); Horas de Papel, Poemas para Macau (1992).
Por conseguinte, tecida no âmago da “rede complexa de hibridismos culturais”, a escrita de Fernanda Dias nutre-se de “arroz da China” (Simas 2012: 50–51), mas sobretudo das vivências, das imagens de Macau, do mundo circundante, do “eu” e do “outro” convertidas alquimicamente em poesia. Além disso, como afirma José Carlos Seabra Pereira é uma “escritora com uma alta concepção de poesia e do seu antiquíssimo pacto com o coração humano,” (2013: 437). Deste modo, em Horas de Papel, Poemas para Macau, tal como refere Fernanda Gil Costa, deparamo-nos com “uma presentificação poética da cidade, em que os lugares emblemáticos são visitados e transfigurados por uma visão simultaneamente lúcida e quase eufórica, de manifesta empatia e celebração, salientando o hibridismo do encontro cultural e a sua estranheza inspiradora.” (2019: 98).
Mais tarde, cerca de vinte e cinco anos depois, Mapa Esquivo, obra também publicada sob a chancela da editora Livros do Oriente, apresenta uma cartografia de Macau como espaço fluido, esquivo, colocando a tónica nas modificações ocorridas ao longo dos últimos tempos. Divide-se em quatro partes: “crónicas de um diminuto pedaço de chão”, “ofícios”, “ao canto da lua lesta” e “caderno da flora urbana”. Na primeira parte, são tecidas imagens diversas e policromáticas de Macau. Evocam-se os mais diversos aspetos do quotidiano: o mosteiro budista Kong Tac-Iam, o primeiro para mulheres no território; as celebrações no templo Pou Tai Yun, marcadas por rituais descritos, por vezes com o recurso a sinestesias, como “tilintar das tigelas”, o “chá fumegante”, a “cinza leve dos incensos” que semeiam a felicidade no coração pagão do “eu”. Do mesmo modo, também a partida, a ausência, o vibrar da cidade, os homens das obras, irmanados com os “pássaros urbanos” na mesma ânsia de “secar ao sol as suas asas” habitam estes poemas, povoados por uma intensa carga pictórica e imbuídos de poderosas imagens, desde o mercado de orquídeas, à noite materializada numa “orquídea negra” ou à chuva torrencial. Assim, através de poemas curtos que parecem conter reminiscências da estrutura dos koans budistas, marcados por um método enraizado num discurso breve, com o intuito de quebrar o raciocínio de forma a atingir a iluminação (Simas 2007: 250). Macau, é tecida de imagens, que se vão justapondo, aproximando-a da pintura, sob uma ótica poliédrica, numa paleta de luz e cores. Esta construção imagética alicerça-se num processo ekfrástico. Por isso, como já referimos a propósito de outra obra da autora, “pintada no desfolhar dos versos, Macau é a cidade de descobertas e desencontros, o território onde o “eu” tenta redescobrir a sua identidade pessoal e nacional, traçada através das linhas configuradoras do retrato do “outro”, deixando transparecer uma sede de diálogo intercultural” (Gago 2015: 121). Instaura-se, então, na poesia, um espaço cultural híbrido marcado por um encontro com o “novo” que, na linha de pensamento de Homi Bhabha (2013: 27), não parte de uma continuidade entre passado e presente, mas sim de um ato de tradução, e, diríamos mais, de integração cultural.
Essa mesma ânsia de integração que culmina no processo de entrosamento bem sucedido transparece igualmente na prosa poética de Dias da Prosperidade, obra composta por dezanove contos, nos quais encontramos frequentemente uma narradora de primeira pessoa, ocidental, acompanhada por A-Fai, homem de matriz chinesa. É contrariado o paradigma colonialista que junta sempre a mulher asiática ou africana com o homem ocidental. Além disso, emergem questões de género relativas à emancipação feminina, como notamos, por exemplo, em dois contos: “Sai Kua” e “Jogos Urbanos”. No primeiro, “Sai-Kuá” (que significa «melancia» em cantonense), a ação localiza-se na China, onde a narradora se encontra alojada num hotel, com A-Fai. O fascínio perante a realidade estrangeira observada, aliado à sensação de estranhamento, são notórios. A descrição do espaço, elaborada sempre na primeira pessoa, pela narradora autodiegética, sob a ótica da visitante, encontra-se impregnada de poesia, evidenciando uma profunda relação entre o sujeito de observação e o objeto contemplado: “De coração transido, apreendo a harmonia do lugar, onde cada objecto polido pelo uso é belo por si” (1998: 27-28). Assim, a narradora capta a beleza que parece oculta pela “ganga” da aparência. Transparece a ânsia de comunhão, de entrosamento que pretende atenuar as divergências culturais, visto que a novidade, o confronto com o diverso impele a narradora para uma tentativa de definição da sua própria identidade, através dos meandros da alteridade. Neste contexto, o episódio relatado seguidamente enfatiza as profundas diferenças culturais existentes entre os dois membros do casal. Assim, após o passeio pela cidade, compram uma melancia no mercado e é a narradora quem a tem de carregar, visto que o companheiro se recusa a fazê-lo. No início, a protagonista revela-se revoltada, mas depois acaba por se submeter, interrogando-se acerca dos motivos que desencadeiam a recusa dele: “[…] que orgulhoso preconceito o impede de caminhar ao lado de uma mulher ocidental, carregando fruta num saco de plástico?” (Dias 1998:30). Este comportamento, incompreensível pelos parâmetros culturais da narradora, gera um conflito, sobretudo interior, não sendo no entanto, suficiente para conduzir a uma rutura. Neste caso, novamente se impõe a questão de género, pois o facto de ser forçada a carregar a enorme melancia, poderá representar o peso do estigma e do preconceito suportado pela mulher nas mais diversas sociedades. No final, a narradora deixa transparecer um misto de conformismo e desafio: “Levanto mais o saco amarelo, encostando-o aos seios. A noite faz-se, já sem sombra de revolta. Como uma bandeira de submissão, entro no hotel arvorando orgulhosamente uma melancia. (Dias 1998: 31)”. Por seu turno, o conto “Jogos urbanos” descreve alguns momentos da vida de um casal, e a sua inter-relação com o espaço urbano de Macau. Inicia-se com a descrição da verdadeira adoração que a personagem feminina deixa transparecer: “Sim, viver com o homem amado é um fulgurante, intranquilo presente dos deuses.” (Dias 1998: 107). Contudo, esta paixão deslumbrada não parece ser minimamente correspondida. Por isso, tal como refere Mónica Simas, “apresenta-se um desnível na relação eu/outro” (Simas 2007: 136). Por conseguinte, verificamos que ele, em contrapartida, considera a mulher como um mero objeto que possui: “Ela pertencia-lhe. Possuí-a com aquele apaixonado rigor com que usufruía de todas as coisas (…). (Dias 1998: 107). No fundo, notamos que o homem parece aperceber-se da existência da sua companheira – que só perto do final sabemos chamar-se Ana Luísa – quando necessita da toalha limpa após banho, só nesse momento, admirado com a ausência dela: “Sem saber porquê, sentiu-se levemente culpado.” (Dias 1998: 111). Deste modo, na época pós-Mao em que a China avançava na modernização, notamos que o poder masculino continua a fazer sentir-se, mesmo que seja o da sedução, gerador de uma submissão feminina que as próprias personagens questionam e parecem não compreender do ponto de vista racional.
Em suma, na sua obra, cruzando artes e culturas, Fernanda Dias capta, de forma sublime e profunda, tanto em prosa como em verso, a essência, a alma dos lugares, das pessoas, de uma cultura “outra”, neste caso a chinesa – sendo o “outro” considerado singular, insubstituível, na linha de pensamento de Levinas.
Citações
“Esta China que eu piso, cheiro, beijo, olho com olhos rasos de inexplicável mágoa, respiro a longos haustos, esta China, palha de arroz molhada, flor de gengibre, caixilhos azuis, toscos chapéus-de-chuva, hieráticos búfalos, lama quente, bananeiras flamejantes, cabanas de esteiras, e a multidão dos olhos que me olham, como estrelas negras à flor das faces mates” (Dias da Prosperidade: 27).
“medito um rio imenso feito delta
cujas águas cismaram de ser mar”
(Chá verde: 71)
“Vivo aqui nesta luz de assombro
Vendo na curva plácida do delta
A miragem dos palácios demolidos
Águas ocres que se entregam
Ao mar levando com suas lamas
gotas rubras acesas, outras lágrimas
Vejo da janela esquivos vestígios
Rasuras, riscos
Ilegíveis sinais num mapa antigo”
(Mapa Esquivo: 21)
“Que olhos trazia quem por aqui passou
E partiu antes que um sobressalto
Do coração lhe dissesse que era já tarde
Tarde para partir e tarde para ficar
o tempo de um verso, de um aceno
cada lembrança como um rochedo
esculpido, resíduos do olhar petrificados
porém cada lugar se desmorona e se refaz
a cada bater de pálpebra um peregrino
com seu bornal se faz ao caminho.”
(Mapa Esquivo: 63)
Bibliografia Ativa Selecionada
Dias, Fernanda (1992), Horas de papel, Poemas para Macau, Macau, Ed. Livros do Oriente.
— (1998), Dias da Prosperidade, Macau, Ed, Livros do Oriente.
— (2002), Chá Verde, Macau, Ed. Livros do Oriente.
— (2016), Mapa Esquivo, Macau, Ed. Livros do Oriente.
Bibliografia Crítica Selecionada
Bhabha, Homi (2013), O Local da Cultura. Trad. M. Ávila, E. Reis, e G. Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG.
Costa, Fernanda Gil (2019), Recuperar Macau. A sobrevida das letras em Português na Cidade Chinesa de Macau. V.N. Famalicão, Ed. Húmus.
Gago, Dora Nunes (2015), “Macau Pintada no Desfolhar dos Versos: A Ekphrasis em Eugenio de Andrade e Fernanda Dias.” Trasparenze e Rifrazioni. L’ Oriente nella Poesia di Língua Porthogheses Moderna e Contemporânea. Ed. Michela Graziani. Rome: Societá Editrice Dante Alighieri: 115–122.
Levinas, Emmanuel (1995), Altérité et Transcendence. Montpellier, Fata Morgana.
Pereira, José Carlos Seabra (2013), O Delta Literário de Macau, Macau, IPM.
Simas, Monica (2007), Margens do Destino, Macau e a Literatura em Língua Portuguesa. São Caetano do Sul, Yendis Editora.
— (2012), “Imagens da China. Evocações através de um Poema de Fernanda Dias.” Ângulo 131–Literatura Comparada vol. II: 48–54.
Autor(a): Dora Nunes Gago | CiênciaVitae