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Maria Ondina Braga

Passagens:

(1922 - 2003)

Nascida em Braga, em janeiro de 1922, Maria Ondina Braga instaurou uma data fictícia de 1932 para o seu nascimento, do mesmo modo que outros escritores encontraram pseudónimos.Numa entrevista concedida à revista O Escritor, em Novembro de 1991, a autora (1922-2003) refere ter sido, aos 23 anos, a primeira jovem de Braga a ir como au pair para o estrangeiro – e que o fez após um longo período de doença, lançando um desafio a si própria “para ver do que era capaz”. Com efeito, esta ida para Inglaterra, nos anos 50, onde ficou durante três anos, foi o primeiro de muitos desafios, tendo a autora vivido depois em França, Angola, Índia (Goa) e China (Macau e Pequim).

Viajante incansável, foi também professora e tradutora, tendo traduzido, entre outros, Graham Greene, John Le Carré, Anaïs Nin, Bertrand Russell, Marcuse e Todorov, além de obras de literatura juvenil e de divulgação científica. Colaborou na página literária do Diário de Notícias, no Diário Popular, A Capital, e nas revistas Panorama, Mulher, Acção e Colóquio Letras.

O cruzamento de culturas e línguas que atravessa as suas narrativas enraizadas em vivências alia-se a uma incessante demanda de si própria. Neste contexto, assume especial relevância o território de Macau, configurado, nas suas diversas vertentes, como o espaço privilegiado de descoberta e construção da identidade do ‘eu’, em confronto com a alteridade, ancorada num processo de rememoração, convertendo-se, temporariamente, numa espécie de axis mundi, como sucede, por exemplo em Estátua de Sal (1969). Com efeito, escrita em 1963, em Macau – onde a autora aportou em dezembro de 1961, fugida de Goa, quando da sua anexação pela União Indiana – a obra remete para a narrativa bíblica. Evoca a mulher de Lot que, ao abandonar Sodoma, a cidade que ia ser destruída, desobedece à entidade divina e olha para trás, sendo, como punição, transformada em estátua de sal, (Génesis, 19:26). E, com efeito, a atitude retrospetiva atravessa todo o livro, onde as imagens dos diversos países conhecidos se constroem, num processo de revisitação, através da memória. Por conseguinte, deparamo-nos com uma narradora que, seguindo o exemplo da mulher de Lot, olha constantemente para trás, ou seja, para o passado. Macau assume-se como o espaço propício ao irromper da memória e a uma demanda de uma identidade dispersa e fragmentada pelos vários cantos do mundo e do tempo. Essa tentativa de (re)construção da identidade, através de incursões interiores e exteriores, é complementada pelos textos que constituem Passagem do Cabo.

Aliás, no âmago dos vários espaços figurados pela autora nas crónicas de A Passagem do Cabo (e também em algumas de A Revolta das palavras, 1975), Macau, em contraposição com a genesíaca Angola – “ventre de fecundidade, Angola. Uma mina. Um manancial.” (1994: 109), à paradisíaca mas indefinida Goa – delineia-se como um lugar enraizado numa mitologia pessoal da autora, que nele se procura constantemente. Esta demanda da unidade e da identidade individual prolonga-se, delineando-se mediante o confronto com o ‘Outro’, com os elementos distintos que marcam o povo, a cultura e os espaços de Macau. A narradora não procura o que se integra no seu conceito de “familiar”, mas, sim, o distinto, o diferente, os aspetos peculiares que conduzem ao conhecimento da essência de distintas culturas estrangeiras, o que se evidencia na preferência por espaços de profunda densidade cultural como é o caso dos mercados e do contato com as pessoas mais simples. Neste contexto, a escrita adquire um teor ontológico, assumindo-se como espaço “sagrado” de revelação e de busca tanto da identidade como da alteridade. Nesta cartografia de lugares, sentidos, sensações, sentimentos, e paisagens, os “odores da memória” são a porta aberta para uma reconfiguração identitária, para a imersão num passado e num presente onde a narradora procura traçar um sentido de pertença, procurando reconhecer-se através da união das partes de si própria que ficaram, como é referido, no excerto abordado inicialmente, pregadas “à parede como um mapa” ou recortadas na sua “própria sombra ao luar dos trópicos” (Braga 1975: 94).

Além disso, a intertextualidade emerge de um modo geral na obra de Maria Ondina Braga, como refere Cândido Oliveira Martins, “fortemente motivada pela vertente memorialística e por hábitos de leitora voraz” (2022: 19). Este elemento emerge nitidamente, por exemplo, em Angústia em Pequim (inspirada numa estada em Pequim, onde lecionou na Universidade de Estudos Estrangeiros) consubstanciado pela presença de lendas chinesas, que se revelam como elementos cruciais na construção da memória e da “imagem do outro” na tessitura da narrativa, delineando-se como um dos alicerces do diálogo intercultural. Tal como refere Maria Araújo da Silva: “A alma da China tradicional é apresentada através de uma acumulação de discursos sobre a gastronomia, os rituais, os costumes, os provérbios, as lendas e a poesia que exprimem o Diverso numa oscilação constante entre visível e invisível, real e imaginário.” (2013: 192).

Por seu turno, tendo como cenário Macau, no ano de 1966, no romance Nocturno em Macau (1991) encontramos como protagonista Ester (nome bíblico que recorda o exílio do povo eleito na Babilónia), professora de inglês portuguesa que leciona no colégio de freiras de Santa Fé. Esta personagem assume-se como uma espécie de “alter ego”, de projeção da autora empírica, pois as suas semelhanças são notórias, desde o facto de ser professora, à situação de ter aportado em Macau, fugida da instabilidade de Goa, ao fascínio pela cultura chinesa, entre outros aspetos. Isto porque também Maria Ondina Braga chegou a Macau, em dezembro de 1961, fugida de Goa.

Da sua vasta obra (atualmente a ser reeditada pela Imprensa Nacional Casa da Moeda por uma equipa coordenada por Cândido Oliveira Martins e Isabel Cristina Mateus, professores da Universidade Católica de Braga e da Universidade do Minho, respetivamente), destacam-se, entre muitos outros, ainda títulos como: A China Fica ao Lado (1968), Os Rostos de Jano (1973), A Revolta das Palavras (1975), A Personagem (1978), Mulheres Escritoras (1980), Estação Morta (1980), Angústia em Pequim (1984), A Rosa de Jericó: contos escolhidos (1992), Vidas Vencidas (1998).

Tendo-se fixado em Lisboa, após o seu regresso de Macau, Maria Ondina Braga faleceu em Braga a 14 de março de 2003.

Em suma, na obra desta autora, a demanda da unidade e da identidade individual, prolonga-se, delineando-se através do confronto com o “Outro”, com os elementos distintos que marcam o povo, a cultura e os espaços, assumindo Macau o relevante papel de uma “janela” para a contemplação da fascinante cultura chinesa. Não são as marcas de Portugal, nem da sua cultura que se almeja encontrar, mas sim o distinto, o diferente, os aspetos peculiares que conduzem ao conhecimento da essência de uma cultura estrangeira tão distinta. Neste contexto, a escrita adquire um teor ontológico, assumindo-se como espaço “sagrado” de revelação e de busca tanto da identidade como da alteridade, pois é contando-se que a narradora procura desvendar a essência do seu “eu” e dos outros.

 

Citações

“De olhos fechados vejo os caminhos. Seixos brancos e redondos, lajes, asfalto luzidio. Também terra. Também areia. As esquinas das ruas, as praças, o vento ao largo dos cais, avenidas rasgadas de tráfego, árvores de boulevards, bancos de parques, arfar de comboios, bramido de ondas nos cascos dos navios. Formas, sons, odores, tudo intacto no quadro da memória. Uma fotografia. Sorria…[…] Na China o leão dançava na festa da Deusa A-Má, era amarelo, corpo de seda, cabeça onírica de dragão.
Fiquei lá. Natal. Dia de Anos. […] Falava língua estrangeira. Palavras que me lançavam e que devolvia, qual jogo de bola. Fiquei lá muda.
Uma vez o nevoeiro cobriu a cidade. Desorientei-me. A ladeira íngreme e escorregadia […] E se nunca chegasse ao meu destino?
Fiquei nas salas de aula […] pregada à parede como um mapa. […] Recortada na minha própria sombra ao luar dos trópicos ou num pátio de lousa ao clarão da fogueira de Guy Fawkes. […]
Para um dia me reencontrar hei-de tornar a esses caminhos, a ver outra vez tudo de olhos fechados: os deuses, os demónios, a minha ousadia. E o retrato voltará a ser perfeito. Mas serei capaz de me reconhecer?” (Braga 1975: 93-94)

 

“Partir é bom, mas pensar em partir melhor ainda. Quanto a mim, acho que tenho sempre chegado. Partir é esperança. Chegar, desencanto”. (Braga 2022: 86)

 

“Os seus pés, soltos, poderiam palmilhar todos os caminhos do mundo. Poderia voltar à China ou ficar ao lado da China. O principal era combater o seu combate de mulher só e abusada. E guardar o coração intacto. Para um dia. Para uma verdade”. (Braga 1991: 12)

 

Bibliografia Ativa Selecionada

Braga, Maria Ondina (1975), A Revolta das Palavras. Lisboa, Bertrand Editora.

— (1984), Angústia em Pequim. Lisboa, Ulmeiro.

— (1991), A China fica ao lado. 4ªed, Macau, Instituto Cultural de Macau.

— (2022), Obras Completas de Maria Ondina Braga, autobiografias ficcionais (Estátua de Sal, Passagem do Cabo, Vidas Vencidas), Ed. e Prefácio J.C.O Martins, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

 

Bibliografia Crítica Selecionada

Carmo, F.J. (1991), “Uma Conversa com Maria Ondina Braga – Entrevista”. O Escritor, Revista de Cultura da Associação Portuguesa de Escritores.
Gago, Dora Nunes (2016), “Ao espelho da memória: Macau, lugar mítico de (re)construção da identidade na obra de Maria Ondina Braga”. Acta Scientiarum, Langage and Culture, v. 38(1): 1-9.

— (2020), Uma Cartografia do Olhar, Exílios, imagens do estrangeiro e intertextualidades na Literatura Portuguesa, VN. Famalicão, Edições Húmus.

Martins, J.Cândido Oliveira (Ed.) (2022), Obras Completas de Maria Ondina Braga, autobiografias ficcionais (Estátua de Sal, Passagem do Cabo, Vidas Vencidas). Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

Silva, Maria Araújo (2013), “A experiência da viagem na obra de Maria Ondina Braga: objectos de busca, cruzamentos e desencontros”. Navegações (6) 2: 188-195.

Autor(a): Dora Nunes Gago | CiênciaVitae

Interbases

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Dora Nunes Gago, "Maria Ondina Braga", Diásporas em Português, ISBN 978-989-35462-0-8, 19 de Junho, 2023, https://diasporasemportugues.ilcml.com/glossary/maria-ondina-braga/

Verbetes de Dora Nunes Gago: Fernanda Dias, Maria Ondina Braga,