(1979 - )
Tatiana Salem Levy figura como uma das mais importantes vozes da literatura brasileira contemporânea. Com uma obra em plena expansão, seus livros englobam crítica literária, literatura infantil, conto, crônica e romance. A escritora é também colunista do jornal brasileiro Valor Econômico, desde 2014, para o qual escreve textos de teor literário. São quatro os seus romances publicados até a presente data, sendo A chave de casa (2007) seu livro de estreia.
Contendo elementos autobiográficos, o romance foi ganhador do Prêmio São Paulo em 2008 na categoria de melhor livro de autor estreante, além de ter sido finalista do Prêmio Jabuti. Desde sua estreia, Levy não só participou de várias antologias de conto em diversos países como Suécia, México, Finlândia, Alemanha, dentre outros, mas também foi selecionada pela revista britânica Granta como um dos vinte melhores jovens escritores brasileiros de 2012. Seu mais recente romance, Vista Chinesa (2021), foi também finalista do Prêmio Jabuti na categoria de romance literário em 2022.
Ao se lançar um olhar holístico à obra de Levy, observa-se uma preocupação em trazer à tona temáticas referentes à contemporaneidade, a saber, o questionamento dos discursos dominantes, a violência contra a mulher, a relação com o mundo natural, os deslocamentos transnacionais e a diáspora. Em todos os seus romances, os personagens se deparam com a árdua tarefa de vivenciar suas subjetividades diante das vicissitudes do contemporâneo. No seu segundo romance, Dois rios (2011), Levy narra a história dos irmãos gêmeos cariocas, Antônio e Joana, cujas vidas são fundamentalmente impactadas pela morte prematura do pai e, posteriormente, pela paixão que compartilham pela mesma pessoa, uma jovem francesa. O livro, permeado de deslocamentos transnacionais, oferece não só uma oportuna meditação acerca do luto, mas também acerca da heterossexualidade compulsória. Paraíso (2014), por sua vez, aborda questões referentes à violência doméstica contra a mulher, além de lançar um olhar desierarquizante sobre a relação entre ser humano e mundo natural. Em seu mais recente trabalho, Vista Chinesa (2021), Levy relata um caso real de estupro ocorrido com uma amiga pessoal no Rio de Janeiro, revelando uma mordaz crítica social à violência histórica contra a mulher.
Uma das chaves de leitura para os romances da autora reside nos deslocamentos transnacionais, uma vez que seus personagens constroem e reconstroem suas subjetividades a partir de jornadas em diferentes países, tais como Brasil, Portugal, França e Turquia. Esta característica alude à própria biografia da autora que, descendente de judeus turcos que imigraram para o Brasil, nasceu em Portugal de pais brasileiros. Exilados devido à ditadura militar brasileira (1964-1985), seus pais foram, posteriormente, beneficiados pela Lei de Anistia (1979) e puderam regressar ao Brasil quando Levy tinha nove meses. Já adulta, Levy faz o percurso inverso, pois atualmente reside em Portugal. Com efeito, o percurso diaspórico vivenciado por diferentes gerações da família da escritora é explicitado no seu primeiro romance.
A chave de casa originou-se da proposta da tese de doutorado da escritora intitulada “Do diário à ficção: um projeto de tese/romance,” no qual indaga “O que significa ser neta de quatro imigrantes, fazer parte de uma família que ao longo dos séculos teve de deixar sua terra natal inúmeras vezes e procurar em terra estranha algum acolhimento possível? Ou ainda: o que significa crescer entre lembranças de viagens e não conseguir sair do lugar?” (qtd. in Meneses n. pag.). Tal qual a protagonista não nomeada do romance, os antepassados de Levy eram judeus portugueses que imigraram para a Turquia devido à Inquisição e, séculos depois, seus avós imigraram para o Brasil em busca da promessa de uma vida melhor na América. A indagação da escritora revela não só um percurso diaspórico, mas também a experiência diaspórica fundacional, a do povo judeu distante da terra bíblica de Israel e disperso pelas nações gentias a partir do século VI a.C.
De acordo com Kevin Kenny (2013), o conceito de diáspora evoluiu e transformou-se ao longo dos séculos. Relacionada à dispersão dos judeus, a definição primária de diáspora deriva da explicação teológica de que a punição do povo judaico, por desobedecer às leis de Deus, seria a dor e o exílio. Neste contexto fundacional, há duas maneiras de enfatizar a experiência diaspórica: enquanto o termo hebraico galut denota o exílio geográfico, diaspeirein não se relaciona a um evento concreto, mas, sim, alude à dimensão espiritual do deslocamento (2013: 5). Ainda segundo o estudioso, milênios e séculos depois, vários povos dispersos involuntariamente pelo mundo adaptam o modelo judeu aos seus propósitos. De fato, desde os anos 1980, o termo ‘diáspora’ tem sido utilizado para abarcar processos migratórios de todos os tipos, desde deslocamentos voluntários a involuntários passando pela ênfase na travessia geográfica em si ou nas trocas multiculturais estabelecidas no novo destino. Este contexto semântico abrangente do fenômeno diaspórico na contemporaneidade dialoga com A chave de casa, uma vez que o romance tanto remete a processos voluntários e involuntários de deslocamento como alude a trocas multiculturais e a sua manifestação espiritual e subjetiva.
Apesar de Levy criar mundos ficcionais ao utilizar aspectos autobiográficos, caracterizar A chave de casa como autobiografia seria limitar a noção, desenvolvida ao longo do enredo, de equivalência entre “contar” e “criar” (Rodrigues 2017: 4). Trata-se, portanto, de uma transfiguração literária, ou, para usar as palavras da escritora, o texto transmuta-se do diário à ficção.
Desprovida do teor religioso original, a diáspora no romance é concebida a partir da experiência de três gerações da mesma família, a do avô turco, a da mãe brasileira e a da protagonista do romance, a filha luso-brasileira. Raphael, o avô da personagem principal, imigrou para o Brasil na juventude tanto em busca de oportunidades como para esquecer a mulher amada, já prometida pelo pai a outro homem. Sua vida é perpassada de trágicas perdas. Tempos depois da mudança ao Brasil, descobre que sua amada se suicidara em protesto contra a decisão paterna. Posteriormente, já com uma vida e família estabelecidas no novo país, Raphael perde um filho. Ambas as mortes são experimentadas pelo homem por meio do silêncio. Segundo a narradora, as histórias das perdas familiares são interditadas, como se falar fosse um desrespeito à dor (Levy 2010: 112), ou, ainda, como se o medo tivesse impedido a palavra (idem: 132). Apesar do silêncio e da dor ao longo da vida, Raphael confia à neta a chave da casa onde morou na Turquia. De fato, há lendas de judeus sefarditas que, diante da sua expulsão da Península Ibérica em 1492, carregaram a chave de suas casas na esperança de um dia retornar. No romance, ao falar à neta que ela tem poder de decisão sobre o destino da chave, o avô reinforça um elo geracional diaspórico simbolizado pela possibilidade do retorno. Segundo Kenny, uma das conexões diaspóricas estabelecidas entre migrantes e o lugar de origem seria precisamente a ideia de retorno à terra natal (2013: 13). No caso da protagonista, a herança familiar, simbolizada pela chave, passa a ser uma escolha, já que ela detém o poder de decisão com relação ao destino do objeto quando afirma “agora cabe a mim inventar que destino dar a essa chave, se não quiser passá-la adiante” (Levy 2010: 13). A chave, por sua vez, é prenhe de significados, podendo abrir a porta para tradições e memórias de outras gerações, possibilitando, assim, o estreitamento dos elos familiares ancestrais.
No que concerne à mãe da protagonista, sua inserção na história diaspórica familiar advém da sua ida a Portugal devido à ditadura militar brasileira. Diferentemente do marido, que consegue escapar do Brasil, a mãe é capturada e torturada pelo regime, juntando-se, na sequência, ao marido em Portugal. O exílio no local de onde seus antepassados foram expulsos posiciona Portugal como espaço central na história diaspórica da família, além de fazer convergirem as experiências pessoais da mãe e do avô. O sofrimento descrito relativo às cenas de tortura pelas quais a mãe passa aliam-se, ainda, à dor experimentada pela própria mãe quando morre em decorrência de um câncer décadas depois, já de volta ao Brasil. Há, na narrativa, um diálogo póstumo entre mãe e filha no qual a voz daquela, por vezes, se contrapõe aos posicionamentos desta. Por exemplo, quando a filha discorre acerca do seu sofrimento ao ver a mãe lutando contra a doença, a mãe admite que também há aspectos positivos com relação à estadia no hospital, devido ao contato íntimo entre as duas.
Adicionalmente, a voz da mãe se une à do avô quando alude ao papel central da filha em lidar com a herança diaspórica da família: “cabe a você, cabe aos que ficaram, contar a história, recontá-la. Cabe a você não repetir os mesmos erros, cabe a você falar em nome daqueles que se calaram” (Levy 2010: 132). Em outras palavras, a voz da mãe não só agrega um nível de complexidade à narrativa por oferecer um contraponto à postura da filha, mas também impele a protagonista a confrontar os interditos, as dores e os silêncios da história familiar.
No início do enredo, a protagonista se encontra paralisada em cima de uma cama devido a três fatores principais: o fardo da herança familiar, a morte da mãe e um relacionamento amoroso violento. Todas essas experiências a levam a uma impossibilidade de locomoção. Em virtude da parálise, seu corpo está dilacerado e aberto por feridas em carne viva (idem: 41). O estado abjeto do seu corpo revela também a fragmentação da sua subjetividade e o questionamento da sua identidade e origem (Rodrigues 2017: 14). Após receber a chave, a protagonista aceita a empreitada de romper tanto com sua história pessoal de dor como com o peso do passado diaspórico familiar: “Queria voltar a andar, encontrar o meu caminho. E me parecia lógico que se refizesse, no sentido inverso, o trajeto dos meus antepassados ficaria livre para encontrar o meu” (Levy 2010: 27). A partir deste momento da narrativa, a protagonista empreende uma viagem à Turquia e a Portugal, recuperando a história da família e o seu senso de si. Na Turquia, apesar da constatação de que a casa do avô havia sido demolida, a chave se imbui de uma dimensão metafórica, sendo o objeto que confere movimento a sua vida. A partir da interação com mulheres num banho turco, da comunicação com familiares distantes e do chamado para a oração muçulmana nas ruas, a protagonista gradualmente estabelece um nível de identificação aprofundado com a cultura dos seus antepassados. Em Portugal, por sua vez, a protagonista vive uma história de amor com um homem português, experiência que, aliada às outras vividas na Turquia, sugere a reconstrução da coerência interna que ela procura (Rodrigues 2017: 18). Neste contexto, Lisboa retém um significado único para a protagonista por ser não só a cidade do seu nascimento, mas também do seu renascimento como mulher agente do seu processo de subjetivação que busca “alguns sentidos para o [seu] corpo, a [sua] história” (Levy 2010: 171). O caminho diaspórico inverso que a protagonista traça a leva da parálise ao movimento, da fragmentação à cura: “E assim pude partir em paz, voltar para o Brasil com a certeza de que a minha relação com Portugal não era mais uma relação com o passado, nem do passado” (idem: 205). Enquanto a jornada à Turquia indica a aceitação da sua herança multigeracional, a viagem a Portugal revela seu percurso identitário pessoal. No final da narrativa, a chave volta à cena, mas desta vez o estranhamento com relação ao objeto se desfaz: “esticando o braço, alcanço a mãe do meu avô. Seguro-a com força, e permanecemos com as mãos coladas, a chave entre nosso suor, selando e separando nossas histórias” (idem: 206). As mãos dadas segurando juntas a chave remete à união de diversos países, culturas e gerações da mesma família. A protagonista, portanto, finaliza o processo de aceitação da sua herança diaspórica.
A diáspora na narrativa se constrói a partir de facetas variadas. Se para o avô Raphael o fenômeno se dá de maneira voluntária com sua ida ao Brasil, para a mãe o deslocamento é forçado devido à ditadura militar. Apesar de não ser uma experiência diaspórica em si, o exílio da mãe se reveste de complexidade devido ao fato de ela regressar simbolicamente à terra natal dos seus antepassados, inscrevendo, assim, entrelinhas diaspóricas a sua história pessoal. A protagonista, por sua vez, une sua história à história do avô, da mãe e dos seus antepassados num movimento de aceitação e resgate da herança familiar. Para ela, a experiência diaspórica ganha contornos múltiplos: como deseja o avô e como faz a mãe, a protagonista empreende o ato de regressar; como alguém que busca a si e a sua herança familiar, ela vivencia não só a manifestação subjetiva da diáspora, mas também sua trocas multiculturais. Complementarmente, ao mencionar a definição do adjetivo diaspórico, Kenny afirma que seu significado tem grande alcance podendo significar diferentes atividades e condições (2013: 13). No caso do romance, observa-se a transmutação do trauma diaspórico em atividade criativa, uma vez que deslocamento geográfico e escrita são fenômenos interligados no enredo. Por vezes, a narradora alude à urgência do ato de escrever: “Se não sangra, a minha escrita não existe. Se não rasga o corpo, tampouco existe” (Levy 2010: 69). Deste modo, Tatiana Salem Levy inscreve, em A chave de casa, o signo diaspórico a partir da sua reconstrução criativa onde contar e criar se sobrepõem. Além disso, o enredo deste seu primeiro romance, com tons autobiográficos, firma sua voz no rol de escritores lusófonos que abordam questões diaspóricas sob prismas multifacetados.
Citações
“O que significa ser neta de quatro imigrantes, fazer parte de uma família que ao longo dos séculos teve de deixar sua terra natal inúmeras vezes e procurar em terra estranha algum acolhimento possível? Ou ainda: o que significa crescer entre lembranças de viagens e não conseguir sair do lugar?” (“Do diário à ficção: um projeto de tese/romance” qtd. in Meneses 2012, n. pag.).
“Nasci no exílio: e por isso sou assim: sem pátria, sem nome. Por isso sou sólida, áspera, bruta. Nasci longe de mim, fora da minha terra – mas, afinal, quem sou eu? Que terra é a minha?” (A chave de casa: 25).
“Para escrever essa história, tenho de sair de onde estou, fazer uma longa viagem por lugares que não conheço, terras onde nunca pisei. Uma viagem de volta, ainda que eu não tenha saído de lugar algum. [. . .] Não tenho a mais ínfima ideia do que me aguarda nesse caminho que escolhi. Da mesma forma, não sei se faço a coisa certa. Muito menos se existe alguma lógica, alguma explicação admissível para essa empreitada. Mas ando em busca de um sentido, de um nome, de um corpo. E por isso farei essa viagem de volta, para ver se não os esqueci perdidos por aí, em algum lugar ignoto. Sem me levantar, pego a caixinha na mesa de cabeceira. Dentro dela, em meio a pó, bilhetes velhos, moedas e brincos, descansa a chave que ganhei do meu avô. Tome, ele disse, essa é a chave da casa onde morei na Turquia. Olhei-o com expressão de desentendimento. Agora, deitada na cama com a chave nas mãos, sozinha, continuo sem entender. E o que vou fazer com ela? Você é quem sabe, ele respondeu, como se não tivesse nada a ver com isso. As pessoas vão ficando velhas e, com medo da morte, passam aos outros aquilo que deveriam ter feito mas, por motivos diversos, não fizeram. E agora cabe a mim inventar que destino dar a essa chave, se não quiser passá-la adiante” (A chave de casa: 12-13).
“Cheguei hoje a Istambul. Carregava nas mãos o passaporte português, acreditando que me daria menos chateações. Uma longa fila até alcançar a polícia federal: de um lado, os turcos, do outro, os estrangeiros. Na minha vez: you need a visa. Como assim? É a lei, portugueses precisam de visto. Mas não sou portuguesa, sou brasileira. Não, não sou brasileira, sou turca. Meus avós vieram daqui, são todos turcos. Eu também. Veja, não pareço turca? Olhe o meu nariz comprido, a minha boca pequena, os meus olhos de azeitona. Sou turca. O policial torceu o nariz: you need a visa. Não discuti, meus argumentos nunca o convenceriam. Dei meia-volta e fui à imigração. Enfezada, indignada, decepcionada. Preciso de um visto para entrar no país dos meus avós? Que eles tenham nascido aqui, crescido aqui, nada disso conta? [. . .] Posso fazer turismo durante três meses, mas não posso trabalhar. Definitavamente, não sou turca” (A chave de casa: 37).
“E assim pude partir em paz, voltar para o Brasil com a certeza de que a minha relação com Portugal não era mais uma relação com o passado, nem do passado” (A chave de casa: 205).
Bibliografia Ativa Selecionada
Levy, Tatiana Salem (2010), A chave de casa. São Paulo/Rio de Janeiro, Editora Record.
Bibliografia Crítica Selecionada
Kenny, Kevin (2013), Diaspora: A Very Short Introduction. Oxford, Oxford UP.
Meneses, Jessica Sabrina de Oliveira (2012), “Memória e escrita: A dupla marca do povo judeu, em A chave de casa, de Tatiana Salem Levy.” Revista Vértices. 12 (2012). n.pag. Web. https://projetophronesis.wordpress.com/2012/10/01/revista-vertices-12-estudos-judaicos/
Rodrigues, Cecília (2017), “Identity, Body, and Displacement: Reconstructing Subjectivity in Tatiana Salem Levy’s A chave de casa.” Luso-Brazilian Review 54.2 (2017): 152-168.
Autor(a): Cecília Paiva Ximenes Rodrigues | UGA