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Bernardo Kucinski

Passagens:

(1937- )

Bernardo Kucinski, ou B. Kucinski, sua insígnia literária, nasceu em 1937 na cidade de São Paulo, Brasil. Graduado em Física (1968), fez doutorado em Ciências da Comunicação (1991) pela Universidade de São Paulo (USP), onde foi professor titular do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes (ECA). Entre os anos de 2003 e 2005, atuou como assessor da Presidência da República do Brasil, durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva. É autor de obras sobre política, economia e jornalismo, tais como Abertura: a história de uma crise (1982), A ditadura da dívida (1987), O que são Multinacionais (1991) e Jornalismo na era virtual (2005).

Sua estreia na seara literária se deu apenas aos 74 anos de idade com o livro K.: relato de uma busca. Além deste, B. Kucinski também é autor de outras obras que versam sobre episódios traumáticos da história brasileira, como Você vai voltar pra mim e outros contos (2014), Júlia: nos campos conflagrados do senhor (2020) e O congresso dos desaparecidos: drama em prosa (2023), além de ter dedicado algumas páginas a histórias que refletem sobre a contemporaneidade, tais como Pretérito imperfeito (2017) e A Nova Ordem (2019).

K.: relato de uma busca, publicado, em 2011, pela editora Expressão Popular e, depois, relançado, em 2014, pela Cosac Naify e, em 2016, pela Companhia das Letras, foi traduzido para oito idiomas e foi finalista dos prêmios São Paulo de Literatura e Portugal Telecom (atual Oceanos). Nessa obra, o autor entrecruza ficção e realidade para narrar uma história cujas feridas permanecem abertas tanto em âmbito pessoal quanto coletivo: o desaparecimento da irmã, Ana Rosa Kucinski, durante a ditadura civil-militar-brasileira (1964-1985).

Esse romance pode ser lido como um livro de memórias, cujas lacunas vão sendo preenchidas por meio de um jogo ficcional que abrange uma multiplicidade de gêneros textuais e pontos de vista narrativos variados. Dos vinte e nove capítulos que o integram, quinze deles são narrados em terceira pessoa e giram em torno da busca do personagem K. pela filha desaparecida, enquanto o restante contém diferentes pontos de vista: alguns capítulos são narrados por vítimas, enquanto outros por militares da ditadura. Só assim, o autor foi capaz de organizar um passado trágico e violento, cujas consequências nefastas tendem a ser mitigadas por simpatizantes do movimento.

Os desaparecidos políticos da ditadura militar no Brasil, cujo paradeiro jamais foi satisfatoriamente revelado, escancaram uma amnésia nacional, pautada por uma grande indiferença da população diante dos crimes cometidos nesse período. Ambientado, portanto, nesse contexto, o primeiro livro literário de B. Kucinski concentra-se numa história familiar, o desaparecimento da irmã e a busca insana do pai pelo paradeiro da filha. Ao horror brasileiro, soma-se outro evento atroz do século XX: as perseguições aos judeus no início do século XX e a Shoah. Afinal, esse pai fora obrigado a emigrar, sem a esposa e o filho, da Polônia, onde, em 1935, mais precisamente nas ruas de Wloclawek, fora arrastado pela polícia polaca, por fazer parte de um movimento operário de judeus e ter sido acusado de subversão. Além disso, anos mais tarde, os familiares dos Kucinski que permaneceram na Polônia foram dizimados pela política nazista.

Se o deslocamento do personagem K., que coincide com a mobilidade forçada do pai do autor, Meir Kucinski, foi em decorrência de perseguições políticas e pelo fato de ser judeu, no Brasil, a promessa de um recomeço e de dias melhores é dissolvida diante da barbárie cometida pelos militares àqueles que consideravam subversivos: os comunistas. Assim, em decorrência de lutas e ideologias políticas, o protagonista se vê novamente instado à experiência diaspórica, obrigado ao deslocamento real e simbólico em busca de mais informações sobre a filha.

O desaparecimento de Ana Rosa, referenciada apenas pela inicial A. no romance, se traduz pela sua elisão na linguagem, afinal ela figura apenas como uma sombra espectral que paira por todas as páginas, assombrando seus personagens, sobretudo o pai, que precisa lidar com uma situação que lhe revela seu desconhecimento diante das situações mais insólitas, embora reais. Justifica-se, desse modo, a intertextualidade kafkiana presente em K.: relato de uma busca. Para além da alusão ao sobrenome do autor, K. refere-se ao personagem Joseph K. de O processo, de Franz Kafka: tanto o K. de Kucinski quanto o K. de Kafka mergulham em águas túrbidas em uma busca improfícua pela verdade. Barafustando contra o sistema, reconhecem que “O Estado não tem rosto nem sentimentos, é opaco e perverso. Sua única fresta é a corrupção. Mas às vezes até essa se fecha por razões superiores. E então o Estado se torna maligno em dobro, pela crueldade e por ser inatingível” (Kucinski 2022: 23).

Esse é o motivo que obriga o personagem K. à experiência diaspórica. Diante de um mal inatingível, o personagem se vê novamente em deslocamento: primeiro deve sair de sua zona de conforto para tentar descobrir quem a filha havia se tornado; em seguida, diante de tentativas infrutíferas por informações válidas em instituições nacionais, o personagem precisa novamente emigrar com a expectativa de alcançar algum tipo de notícia que pudesse trazer-lhe conforto.

A busca do pai inicia-se na universidade onde a filha era professora do Instituto de Química, da USP. Num contexto de repressão e de delatores à espreita, encontra mais olhares desconfiados e temerosos do que respostas. Recorrer aos superiores de A. parecia ainda um erro pior. Dessa forma, como um detetive que precisa juntar peças soltas e desconexas, K. prossegue seu intento de reconstruir a história da filha. Descobre a vastidão de sua outra vida, oculta, em uma reunião dos familiares dos desaparecidos, quando suas suspeitas lhe são confirmadas: A. participava da luta clandestina contra o regime ditatorial. Ao sentimento de preocupação do pai soma-se o de culpa e arrependimento por não ter estado presente quando a filha precisara dele, por não ter desconfiado do que ela fazia. Passa, então, a culpar a si mesmo e ao seu amor pela literatura iídiche, essa “língua-cadáver”, que lhe fizeram ausente da vida de A.

Como em um cenário kafkiano, a busca de K. revela-se ainda mais periclitante, pois, convertido em um símbolo – “o ícone do pai de uma desaparecida política” (idem: 98) –, vê-se, por um lado, protegido, afinal, diante de sua presença pública e midiática a ele nada poderia ser feito, se o fosse, seria como uma confissão da violência praticada pelo regime ditatorial cujos crimes cometidos foram negados; por outro, percebe-se ainda mais vulnerável à “guerra psicológica adversa” (idem: 74) praticada pelos militares, que consistia em confundir o inimigo com mentiras, uma forma eficaz de tortura.

Ao longo de sua busca pelo paradeiro da filha, K. é obrigado a viver uma espécie de deslocamento simbólico, enfrentando os agentes de uma justiça falida e gangrenada, cada vez mais dispostos a encobrirem seus crimes. Por isso, ao deslocamento simbólico, precisa adicionar um deslocamento real: se o país que o acolhera quando perseguido por ser judeu passa a persegui-lo e culpá-lo por ter uma filha comunista, a ele restava mais uma vez emigrar e procurar apoio em instâncias internacionais.

Requisitando ajuda no processo de busca por notícias da filha, estivera na Anistia Internacional de Londres, apelou à Cruz Vermelha de Genebra, fez uma petição à Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) e, por fim, recorreu ao American Jewish Committee, interpelando o seu representante por não ter criticado publicamente a ditadura brasileira. A travessia geográfica não se revela eficaz: os militantes da luta clandestina, no Brasil, sumiram sem deixar vestígios. Por isso, K., após a passagem pela “América das fortunas do aço e do petróleo” (idem: 62), aflige-se com um pensamento amargo: talvez, se tivesse escolhido a América do Norte ao invés da América do Sul, a tragédia que acometera sua filha não tivesse acontecido.

A diáspora em K.: relato de uma busca é concebida, portanto, pela experiência do próprio pai, Meir Kucinski, judeu polonês, que foi forçado a emigrar após ter sido condenado em seu país natal por conduzir propaganda comunista pela sua atividade no Paolei-Zion, o Partido dos Trabalhadores de Sion. Ao conceito tradicional de diáspora, associado à punição divina que fadou o povo judeu ao exílio e ao sofrimento, acrescenta-se um sentido expandido, que inclui aqueles que não encontram jazigo nem morada em lugar nenhum. Talvez, por isso, continuando a linhagem paterna (Meir Kucinski fora um premiado escritor na língua iídiche), também Bernardo se envereda pelas trilhas literárias, afinal, se a memória não oferece a redenção de um passado traumático, a literatura pode ser, pelo menos, uma forma de sobrevivência. Derivado de vários traumas e de constantes deslocamentos, esse romance converte-se, assim, em túmulo para a irmã desaparecida de B. Kucinski.

K.: relato de uma busca tem, pois, a difícil missão de dar conta de um passado traumático promovido pela ditadura militar. Por isso, ao transformar a memória em literatura, mesmo quando encontra diante de si mais lacunas e perguntas do que respostas, B. Kucinski, com seu romance, relega ao outro, nesse caso o leitor contemporâneo, o conhecimento crítico de um passado recente da história nacional, marcado por sofrimento e pelo luto. Desse modo, mesmo que muitos neguem a história brasileira, essa obra converte seu leitor em uma espécie de testemunha, a fim de que o passado não seja jamais esquecido.

 

Citações

“K. tudo ouvia, espantado. Até os nazistas que reduziam suas vítimas a cinzas registravam os mortos. Cada um tinha um número, tatuado no braço. A cada morte, davam baixa num livro. É verdade que nos primeiros dias da invasão houve chacinas e depois também. Enfileiravam todos os judeus de uma aldeia ao lado de uma vala, fuzilavam, jogavam cal em cima, depois terra e pronto. Mas os goim de cada lugar sabiam que os seus judeus estavam enterrados naquele buraco, sabiam quantos eram e quem era cada um. Não havia a agonia da incerteza; eram execuções em massa, não era um sumidouro de pessoas.” (K.: relato de uma busca: 29)

“Tempos depois, capturado e desaparecido pelos militares, deixou, como único bem, a biblioteca revolucionária de mais de dois mil tomos, a maioria expropriados. Curiosamente, na primeira página de todos ele assinara, em letras firmes e rápidas, seu nome por extenso e data de expropriação.
Queria demarcar uma posse? Não. Não faz sentido. Talvez soubesse, isso sim, e desde sempre, que os livros seriam os únicos vestígios de sua vocação revolucionária, pequenas lápides de um túmulo até hoje inexistente.” (idem: 60)

“[o rabino diz a K.] O que é o sepultamento senão devolver à terra o que veio da terra? Adam, adamá, homem e terra, a mesma palavra; o corpo devagar se decompõe e a alma devagar se liberta; por isso, entre nós, é proibido cremar ou embalsamar, é proibido usar caixões de metal, proibido lacrar com pregos, e tantas outras proibições. Não tem sentido sepultamento sem corpo.
[…]
K. sente com intensidade insólita a justeza desse preceito, a urgência em erguer para filha uma lápide, ao se completar um ano de sua perda. A falta da lápide equivale a dizer que ela não existiu e isso não era verdade: ela existiu, tornou-se adulta, desenvolveu uma personalidade, criou o seu mundo, formou-se na universidade, casou-se. Sofre a falta dessa lápide como um desastre a mais, uma punição adicional por seu alheamento diante do que estava acontecendo com a filha bem debaixo de seus olhos.” (idem: 86-87)

“Quando as semanas viram meses, é tomado pelo cansaço e arrefece, mas não desiste. O pai que procura a filha desaparecida nunca desiste. Esperanças já não tem, mas não desiste. Agora quer saber como aconteceu. Onde? Quando exatamente? Precisa saber, para medir sua própria culpa. Mas nada lhe dizem.
Outro ano mais, e a ditadura finalmente agonizará, assim parece a todos; mas não será a agonia que precede a morte, será a metamorfose, lenta e autocontrolada. O pai que procura a filha desaparecida ainda empunhará obstinado a fotografia ampliada no topo do mastro, mas os olhares de simpatia escassearão. Surgirão outras bandeiras, mais convenientes, outros olhares. O ícone não será mais necessário; até incomodará. O pai da filha desaparecida insistirá, afrontando o senso comum.
Alguns anos mais e a vida retomará uma normalidade da qual, para a maioria, nunca se desviou. Velhos morrem, crianças nascem. O pai que procurava a filha desaparecida já nada procura, vencido pela exaustão e pela indiferença. Já não empunha o mastro com a fotografia. Deixa de ser um ícone. Já não é mais nada. É o tronco inútil de uma árvore seca.” (idem: 98)

“Era como se faltasse o essencial; era como se as palavras, embora escolhidas com esmero, em vez de mostrar a plenitude do que ele sentia, ao contrário, escondessem ou amputassem o significado principal. Não conseguia expressar sua desgraça na semântica limitada da palavra, no recorte por demais preciso do conceito, na vulgaridade da expressão idiomática. Ele, poeta premiado da língua iídiche, não alcançava pela palavra a transcendência almejada.
[…]
Aos poucos K. foi se dando conta de que havia um impedimento maior. Claro, as palavras sempre limitavam o que se queria dizer, mas não era esse o problema principal; seu bloqueio era moral, não era linguístico: estava errado fazer da tragédia de sua filha objeto de criação literária, nada podia estar mais errado.” (idem: 145)

 

Bibliografia Ativa Selecionada

Kucinski, B. (2014), Você vai voltar pra mim e outros contos. São Paulo, Cosac & Naify.

— (2015), Alice: não mais que de repente. Rio de Janeiro, Rocco.

— (2016), Os visitantes. São Paulo, Companhia das Letras.

— (2017), Pretérito imperfeito. São Paulo, Companhia das Letras.

— (2019), A Nova Ordem. São Paulo, Alameda Casa Editorial.

— (2020), Júlia: nos campos conflagrados do Senhor. São Paulo, Alameda Casa Editorial.

— (2021), A cicatriz e outras histórias: (quase) todos os contos de B. Kucinski. São Paulo, Alameda Casa Editorial.

— (2022), K.: relato de uma busca. São Paulo, Companhia das Letras.

— (2022), O colapso da Nova Ordem. São Paulo, Alameda Casa Editorial.

— (2023), O congresso dos desaparecidos: drama em prosa. São Paulo, Alameda Casa Editorial.

 

Bibliografia Crítica Selecionada

Clifford, J. (1994), Diasporas. Cultural Anthropology, 9 (3): 302-338.

Oliveira, G., & Ferraz, B. (2023), Ditaduras, trauma e escrita: o testemunho de B. Kucinski e Roberto Walsh. Crátilo. No prelo.

Santos, M. (2019), Bernardo Kucinski – A Nova Ordem [fotografia]. USP imagens. Consultado em: https://imagens.usp.br/escolas-faculdades-e-institutos-categorias/escola-de-comunicacoes-e-artes-institutos-faculdades-e-escolas/bernardo-kucinski-a-nova-ordem-escola-de-comunicacoes-e-artes-eca/attachment/reg-224-19-bernardo-kucinski-a-nova-ordem-escola-de-comunica-8/

Silva, L. H. O., & Xavier, R. C. L. (2018), Pensando a Diáspora Atlântica. História, 31: 1-11. Consultável em: https://www.scielo.br/j/his/a/NYnTzkbFH4TB44xScnBXJ3K/#

Silveira, A. H. (2022), A ferida ainda não cicatrizada: memória, trauma e testemunho em K. Relato de uma busca, de Bernardo Kucinski (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal de Ouro Preto, Minas Gerais. Consultado em: http://www.repositorio.ufop.br/jspui/handle/123456789/15595

Autor(a): Bruna Fontes Ferraz | Lattes || Co-Autor(a): Gustavo Luís de Oliveira | Lattes


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Bruna Fontes Ferraz , "Bernardo Kucinski", Diásporas em Português, ISBN 978-989-35462-0-8, 5 de Dezembro, 2023, https://diasporasemportugues.ilcml.com/glossary/bernardo-kucinski/

Verbetes de Bruna Fontes Ferraz : Verônica Antonine Stigger, Bernardo Kucinski,
Verbetes de Gustavo Luís de Oliveira: Bernardo Kucinski,