(1967- )
Aida Gomes da Silva nasceu em 1967 no Lundimbale, Huambo, Angola. Filha de mãe angolana e pai português, veio para Portugal com o pai em 1975 e aí permaneceu até aos 18 anos, altura em que se mudou para a Holanda, onde estudou Sociologia e fez mestrado em Estudos do Desenvolvimento. Desde 2021 é doutoranda em História da Literatura na Universidade Federal de Rio Grande (FURG), no Brasil. Viveu em diversos países africanos (Camboja, Moçambique, Suriname, Angola, Libéria, Sudão e Guiné-Bissau), trabalhando em projetos comunitários para jovens, na formação para jornalistas e em missões de paz da ONU, em situações de conflito ou pós-conflito. A sua infância foi marcada por uma aprendizagem precoce da leitura e pelo contacto com a música e a literatura.
Uma vez que saiu de Angola muito cedo, guarda uma memória limitada desse tempo, agravada pelas circunstâncias de ter crescido sem mãe a partir dos 14 meses e de o pai ter falecido aos 18 anos. Contudo, África e, de modo mais particular, Angola, representou sempre para a autora um território a conhecer e desvendar, ao qual quis regressar logo que as condições do país o possibilitaram. O plurilinguismo marca igualmente o seu percurso, no qual pontuam o umbundo da mãe e das amas, o português do pai, e depois o holandês, língua de estudo e de trabalho, segundo Gomes mais árida e dura do que as primeiras.
O único romance de Aida Gomes publicado à data, Os Pretos de Pousaflores (Dom Quixote, 2011), resulta da vontade de escrever em português e de contar uma história que, não sendo autobiográfica, estabelece pontes entre dois territórios da memória – o português e o angolano. Sendo ela mesma mestiça e tendo vindo para uma aldeia no interior centro de Portugal em fuga à iminência da guerra civil, é também esta, de algum modo, a sua história, ainda que só no início da vida adulta o tenha percecionado como tal.
Aida Gomes publicou ainda ensaios, crónicas e textos breves em publicações de diversos países, como Buala, InComunidade; Revue Noire, entre outros. Na obra coletiva Contágios. Mapas do Confinamento, uma coletânea de textos escritos por autores de língua portuguesa, contribuiu com o conto “Bicho quer carinho”.
Em Os Pretos de Pousaflores, a escritora cria um romance polifónico, onde a voz narrativa é confiada aos distintos elementos da família – Silvério, os filhos Ercília, Justino e Belmira, a mulher angolana Deodata e a irmã Marcolina. Esta última é surpreendida com a chegada à aldeia do irmão que tinha partido para Angola quatro décadas antes, assim como dos três sobrinhos mestiços, cada um de sua mãe. Trata-se de um choque para a personagem, que se vê perante a inevitabilidade de acolher aqueles a quem todos tratam por “pretos”, mas não menos o será para os adolescentes, que têm de aprender modos de vida e comportamentos em tudo diferentes do que tinham vivido na fazenda do Heilongo. Mais tarde, junta-se à família Deodata, a esposa negra e mãe da filha mais nova de Silvério, que tinha sido deixada para trás no êxodo de Angola.
Contrariando a retórica que apresenta a integração dos retornados como uma história de sucesso, Aida Gomes dá protagonismo àqueles que permanecem nas margens da sociedade portuguesa, e cuja exclusão se prolonga até aos dias de hoje, nos bairros periféricos das grandes cidades. Alvo de uma atenção mediática consideravelmente inferior a romances como O Retorno de Dulce Maria Cardoso (publicado no mesmo ano) ou Caderno de Memórias Coloniais de Isabela Figueiredo (2009), em Os Pretos de Pousaflores a autora expõe o racismo estrutural, a tacanhez de horizontes do interior do país nos anos 70 e 80 do século XX, a ausência de perspetivas de futuro. E fá-lo com o mínimo de mediação pois a polifonia resultante da alternância dos narradores provoca um diálogo entre os distintos modos de percecionar e valorar questões como o colonialismo, a (não) integração dos retornados, o conservadorismo dos costumes, a repressão do feminino.
Logo no início do romance, à chegada ao aeroporto, se percebe o distanciamento face à multidão que rodeia a família – “O pai não nos quer ver junto com os retornados” (Gomes 2011: 22). A negação deste rótulo, ao qual se sentem alheios, constitui uma forma de resistência face à realidade de despossessão que estão a viver, como se fosse possível preservar a ligação à terra angolana, apesar de todas as evidências em contrário. É assim que, em resposta à pergunta insistente de Ercília sobre se voltariam a Angola, Belmira sossega-a dizendo que um dia estarão de regresso, pelo facto de ser essa a sua identidade nacional – “Somos angolanos, não somos?” (idem: 23). Curiosamente, a diferença deste grupo familiar face aos outros retornados regressa pela boca de um habitante da aldeia, que elogia Silvério por “não se meter nos hotéis onde estão os retornados” (idem: 30), a viver às custas do Estado.
Esta distinção, porém, não protege os jovens de atitudes de discriminação, pois a cor da pele constitui o principal marcador de diferença, condenando-os a ser objeto de reiteradas atitudes de racismo. Desenraizados e solitários, não há inclusão possível para estes jovens, nem na escola, nem na família alargada, muito menos numa sociedade incapaz de integrar os “outros” que vêm de um império derrotado e humilhado, que se prefere ignorar. Sem solução para o sentimento de estarem “fora do lugar”, dois dos irmãos escolhem uma nova desterritorialização. Para Justino, que regressa a Angola, o círculo completa-se, e do mesmo modo que em Portugal reagia com humor e alguma perspicácia às dificuldades, no país natal encontra um tempo de felicidade com mulher, filhos e um negócio em perspetiva; já Belmira, “sem raiz nem terra” (idem: 282) como o mar que tanto admira, emigra para a Suíça depois de uma deriva dolorosa pela capital portuguesa.
Quanto a Silvério, o seu percurso é marcado pela ambivalência, entre o papel de colonizador branco, dono de mulheres e de negócios, e uma consciência progressista que o faz defender escola para todos e admitir a legitimidade das lutas de libertação. Migrante desde o início da idade adulta, o regresso definitivo à aldeia natal, que não tinha antecipado, constitui uma derrota que o exila de um espaço de pertença construído ao longo de décadas em solo africano. O lento processo de enlouquecimento, que o leva à perda da memória, pode ainda ser entendido como uma incapacidade de lidar com o peso do passado, anulando qualquer esperança de futuro e dificultando a procura, por parte dos filhos, de referências para uma identidade que nunca deixa de ser esquiva.
À exceção de Marcolina, enquistada no preconceito e produto dos estreitos muros da aldeia, todas as personagens principais são, assim, marcadas pela diáspora e pelo nomadismo, o que exprime, como afirma Ana Luísa Amaral em nota de apresentação de um outro livro (Caderno de Memórias Coloniais), uma identidade em construção, ambivalente: “No sujeito nómada, o que está em causa não é a desterritorialização, ou o deslocamento per se, mas a liberdade discursiva em relação às narrativas dominantes, porque é um sujeito em devir, que se vai tornando – e eu saliento aqui a pulverização e a recusa de identidades estáveis.”
Estas palavras ganham ainda maior pertinência se observarmos que a vida nómada de Aida Gomes, iniciada na infância e prosseguida na idade adulta, por escolhas pessoais e profissionais, é essencial para compreender a sua própria identidade. Numa entrevista recente, a autora refere a sua ligação ao conceito de diáspora:
No definir da palavra “identidade”, penso que sou parte de uma diáspora angolana. Diáspora é um conceito moderno fascinante porque é paradoxal, pertença sem ser pertença. Um espaço imaginado, o reconhecimento de ser parte de uma comunidade que, distanciada de um solo, reconhece os sabores (Calulu), os sons (tanta música!), o gozar e finalmente as paisagens: os verdes do Huambo a Benguela são a minha paz, não as trocava pela serenidade dos lagos da Suíça. Todos temos um lugar de origem onde a nossa alma descansa. Nem que seja um lugar imaginário. (Gomes 2011a)
A este respeito, refira-se ainda a experiência de Deodata, a mulher negra que se põe a caminho de Portugal para reencontrar a família. É pela sua voz que se introduz, de forma breve, a distinção entre refugiados e desalojados, sendo os primeiros aqueles que foram forçados a partir pela guerra e nada trazem consigo, e os segundos os que perderam os bens, querem “ser escutados urgentemente e salvar o que perderam” (Gomes 2011: 157). É um ponto de vista distinto do de Silvério e dos outros portugueses quando se referem pejorativamente aos retornados, mais ingénuo porventura, mas relevante por questionar a própria valoração dos migrantes e das suas motivações. Involuntariamente nómada, a personagem foca-se no objetivo final e quando chega finalmente à aldeia, será o suporte material e emocional de Silvério, progressivamente alienado de si mesmo e das suas circunstâncias.
A produção literária de Aida Gomes, apesar de a esta data ser ainda pouco extensa, representa um importante contributo para o repensar das questões identitárias pós-coloniais, subvertendo a mitologia do império e abrindo espaço para a voz dos afrodescendentes, que escassamente se fazem presentes, mesmo no corpus daquela que é conhecida por “literatura do retorno”. Os conceitos de exílio, migrações, diáspora surgem, assim, intrinsecamente ligados à memória e identidade – uma memória que se constrói na e pela escrita, em permanente redefinição: “(…) a memória é o que, de uma ou outra forma, recompõe aquilo que seria uma parte da minha identidade, porque eu recomponho, reconstruo no momento em que estou a escrever. E, na escrita, a memória é sempre inventada, tal como a identidade. (…) E é isso que faz parte da escrita: estamos constantemente a redefinir e a definir o mundo a partir daquilo que é a nossa memória e os nossos focos identitários.” (Gomes 2021)
Citações
Empurram-me contra o cartaz da parede. Letras azuis e brancas, Bem-Vindos a Portugal. Aperto as asas do saco de plástico nos dedos. Avalanche de vozes nos corredores. Portas de vidro e metal cinzento. O altifalante quer que o senhor Silva compareça ao balcão. Não vejo o pai. Nem o Justino. Nem a Belmira. Sumiram-se. Nuvens cinzentas nas portas de vidro.
Estico-me. Na ponta dos pés. As solas das sandálias dobram-se. As correias magoam-me.
Tropeço.
Comichão de água nos olhos, bolha a bolha, quase a rebentar.
– Ercília! Não entendes mesmo nada de nada? O pai não nos quer ver junto com os retornados.” (Os Pretos de Pousaflores: 22)
Não gosto de pretos. Saiu-me, está cá fora, até durmo melhor. Não gosto deles, pronto! O que queres que te faça? Agora que temos televisão farto-me de os ver. São muito bons no atletismo e nos futebóis, dançam e cantam que se fartam, pois a mim não me encantam. Não gosto deles e muito menos de mulatos, e vê lá a minha sina, tenho-os em casa. Raça falsa, só a Ercília, coitada, é obediente, saiu a mim. A gente aqui em Portugal não tem nada a ver com pretos. Perdermos as colónias foi a maior bênção que Deus nos deu. Eles que fiquem na terra deles, a gente fica na nossa, que aqui ao menos não é uma bandalheira como lá! E tu apareces-me aqui com três mulatos. No início até tinha vergonha de sair à rua. (idem: 142-3)
A diferença entre desalojados e refugiados está na paciência. Os desalojados perderam os bens. Perderam as casas. Querem ser escutados urgentemente e salvar o que perderam. Os refugiados não. Foram embora. Ninguém os mandou ir embora. Fugiram dos gritos, do fogo, da nuvem de fumo, das armas. Meteram-se à estrada, cesta na cabeça, biquatas nas quindas, o resto da fuba numa lata de conserva, criança abandonada e medo, muito medo. Mais não trouxeram. (idem: 156-57)
A mim dói-me o gelo dos dias desde que o pai amaldiçoou o destino, Angola, terra dos infelizes, e Portugal, uma nação equivocada. Em ambos os lados, a sorte é parca. E, quando fala, não parece saber com quem fala, se fala connosco, se com o senhor Manuel. A tia diz, o vosso pai endoideceu. Só pode ser isso. Foi maldição, da qual surtiu o efeito desta tristeza atroz em mim. (…) (idem: 161)
(…) A Ercília podia perguntar, mas era como eu, bagagem do nosso pai. Tínhamos só o direito de perguntar, direito de mudarmos o destino não tínhamos. O Justino também não. Éramos todos bagagem do nosso pai.
Mas tem mal ser bagagem?, quer saber o camionista. Assim à partida, não, mas a bagagem pode contar a sua própria história? (…) Não, a bagagem não tem como contar a sua própria história. A bagagem nunca se apodera da viagem. O mesmo se passa com a história do caçador do leão, quem vai contar? O leão não vai contar. Vai ser sempre o caçador. Foi ele quem montou a emboscada. Só ele pode contar como foi. (idem: 284)
Bibliografia Ativa Selecionada
Gomes, Aida (1996),The Mozambican Press: a political analysis and a Historical overview, 1854-1994, Occasional Papers Series, Third World Centre/Development Studies, Catholic University of Nijmegen.
— (1997), “Repensar a Ilha de Moçambique”, DEMOS: 11.
— (2010), “História, identidade e afrodescendência, 14 de setembro de 2010. https://www.buala.org/pt/a-ler/historia-identidade-e-afro-descendencia
— (2011), Os Pretos de Pousaflores. Lisboa: Dom Quixote.
— (2011), “Maneiras de dizer” in Buala, 17 de abril de 2011. https://www.buala.org/pt/mukanda/maneiras-de-dizer
— (2011), “Encruzilhadas históricas: entrevista à escritora Aida Gomes” por Marta Lança, 24.03.2011 https://www.buala.org/pt/cara-a-cara/encruzilhadas-historicas-entrevista-a-escritora-aida-gomes
— (2011), Entrevista a Aida Gomes por José Fialho Gouveia, “Bairro Alto” documento audiovisual, 17.5.2011, https://arquivos.rtp.pt/conteudos/aida-gomes/
— (2015), “Por uma literatura sem muros”, in Enrique Rodrigues Moura e Doris Weiser (ed.), Identidades em Movimento: construções identitárias na África de língua portuguesa e seus reflexos no Brasil e em Portugal, Instituto Ibero Americano, Vol. 28, Frankfurt and Main.
— (2016), “Impressões”, Revue Noire, n.15.
— (2017), “A dançarina de Cartum”, 11.01.2017. https://www.portaldaliteratura.com/cronicas.php?id=59
— (2018), “Kosovo, as crianças e os cães”, InComunidade, edição 65, fevereiro de 2018. http://old.incomunidade.com/v65/art_bl.php?art=46
— (2021), “A palavra nómada: entrevista a Aida Gomes” por Doris Wieser”, Aida Gomes e Paulo Geovane e Silva, 30.07.2021. https://www.buala.org/pt/a-ler/a-palavra-nomada-entrevista-a-aida-gomes
— (2022), “Caderno de Memórias Coloniais e a representação do/a africano/a”, Calestroscópio, Revista do Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos de Linguagem. Vol.10, nº1, 2022.
— (2022), “Bicho quer carinho”, Contágios. Contos e crónicas. Mapas do Confinamento. Aveiro, Visgarolho Editora.
Bibliografia Crítica Selecionada
Ferreira, Patrícia Martinho (2015), “O conceito de ‘retornado’ e a representação da ex-metrópole em O Retorno e Os Pretos de Pousaflores”, Ellipsis, 15.
Fonseca, Ana Margarida (2014), “Histórias de regressos, memórias de partidas. Imagens do eu e do outro em narrativas pós-coloniais”. In Ana Paula Coutinho, Maria de Fátima Outeirinho e José Domingos de Almeida (orgs.), Nos et Leurs Afriques/África de uns e de outros. Bruxelles: Peter Lang.
Garraio, Júlia (2020), “Para lá da metáfora: Violência sexual e (pós-)colonialismo no romance Os Pretos de Pousaflores de Aida Gomes”, Buala, https://www.buala.org/pt/a-ler/para-la-da-metafora-violencia-sexual-e-pos-colonialismo-no-romance-os-pretos-de-pousaflores-de
Leal, Maria Luísa (2019), “Escritas literárias de uma deslocação histórica: o ‘retorno’”. Literary Writings of a Historical Displacement: The “Return”, Revista do CESP, Belo Horizonte, v. 39, n. 61: 87-99, 2019.
Marques, Sandra Isabel (2021), “Motivações para uma revisitação de África: contributo no feminino para a literatura (pós-)colonial”, Caderno Seminal – Estudos de Literatura: Escrita de Mulheres: prosa em língua portuguesa e comparatismos, n. 39, 2021.
Autor(a): Ana Margarida Fonseca | ORCID