(1964 - )
Joaquim Arena nasceu na ilha de São Vicente, em Cabo Verde e mudou-se com a família para Lisboa aos cinco anos de idade. Filho de pai português e mãe cabo-verdiana, a sua experiência pessoal de emigração (uma década antes da Revolução de Abril) e a sua condição de estar entre culturas são elementos integrantes da sua escrita. Nas décadas de 1980 e 1990, Arena formou-se em Direito e dedicou-se à música e ao jornalismo, tendo também durante esse período viajado pela Europa. No final dos anos 90, decide regressar a Cabo Verde como advogado, músico e jornalista.
Aí fundou o jornal O Cidadão e colaborou com a revista África Hoje. Foi assessor cultural da Alliance Française em São Vicente e, entre 2017 e 2021, foi conselheiro cultural e de comunicação do Presidente da República de Cabo Verde, Jorge Carlos Fonseca. Entre ficção e não ficção conta já com cinco títulos publicados: Um Farol no Deserto (2000), A Verdade de Chindo Luz (2006), Para Onde Voam as Tartarugas (2010), Debaixo da Nossa Pele. Uma Viagem (2017) e Siríaco e Mister Charles (2022). Em 2021, com o conto “A melancolia dos eléctricos” participou no projeto ReMapping Memories, uma iniciativa do Goethe-Institut com o objetivo de ligar duas cidades com um passado colonial, Lisboa e Hamburgo.
Arena faz parte das novas gerações de criadores, herdeiros e testemunhas do passado imperial português, que almejam quebrar os silêncios, perscrutar as ausências e ativar um ponto de vista transterritorial e transgeracional, com um inegável sentido de confrontação, negociação e de reparação histórica. Encontramos na obra de Arena um exemplo daquilo que Sabrina Brancato e outros investigadores têm vindo a chamar, desde o início dos anos 2000, de afroeuropa, isto é, um exemplo de, nas palavras de María Jesús Fernández, “pertença a uma comunidade afroeuropeia” (2013: 138). A mesma opinião é reforçada por Margarida Calafate Ribeiro ao observar que Arena pertence a uma “linha literária de abrangência europeia – afropean, numa versão mais anglo-saxónica desta herança – ou afropolitana – afropolitan numa versão mais francesa – de identidades herdeiras dos processos coloniais, que procuram as suas continuidades na Europa de hoje, ao mesmo tempo que se inscrevem numa genealogia literária portuguesa de imaginação e de demanda de Portugal e da Europa” (2020a: 82).
Desde a publicação de A Verdade de Chindo Luz (2006), passando por Debaixo da Minha Pele. Uma Viagem (2017) até ao mais recente romance Siríaco e Mister Charles (2022) que a questão da diáspora e as suas ramificações temáticas – migração, deslocamento, identidade – têm norteado de forma muito evidente o seu projeto literário, facto que deriva naturalmente do seu percurso biográfico e da sua autoidentificação, vale lembrar que “Joaquim Arena é um escritor que se descreve como ‘100% cabo-verdiano e 100% português’ (….) e foi um precursor em Portugal de uma literatura que trazia para a cena do texto os espaços, os tempos e as personagens africanas, habitantes de Lisboa ou dos bairros periféricos, que com os seus sonhos e as suas lutas iam crescendo numa casa cabo-verdiana no meio de Portugal” (Ribeiro 2020a: 84).
Uma das primeiras explorações das temáticas da diáspora e da identidade diaspórica feita por Arena encontra-se em A Verdade de Chindo Luz, romance publicado em 2006, uma narrativa centrada no processo de descoberta da identidade cultural dos filhos de emigrantes que habitam na orla de Lisboa, primeiramente “numa comunidade ‘acampada’ que tinha em comum o ‘regresso de África’ na sequência da descolonização — que contemplava brancos retornados, negros e mestiços — para depois se concentrar nas comunidades negras” (Ribeiro 2020b: 293). Este livro conta, pois, a história de uma família composta pelos pais João e Nitinha, imigrados de Cabo Verde antes da Revolução de Abril, e pelos seus quatro filhos – Chindo, Baldo, Neuza e Lili – já nascidos em Portugal e criados num bairro que alberga uma grande diversidade de pessoas. Descoberta a verdade sobre a morte de Chindo, a decisão de Baldo deixar Portugal definitivamente, no final do romance, revela quiçá o profundo desejo da segunda geração de procurar uma comunidade que a receba e que lhe dê um sentido de orientação coletiva que contemple espaço para a diferença. Não se tratará aqui de um desejo pela terra natal – desire for homeland – mas de um desejo de sentir-se em casa – homing desire (cf. Cohen 2008: 9). Em suma, o conceito de diáspora que atravessa este romance diz respeito especificamente ao movimento de migração provocado por razões económicas dentro do espaço-tempo colonial (antes do processo de descolonização iniciado em 1974 e nas duas décadas seguintes, devido à intensificação da violência das guerras civis que deflagram em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau), mas também ao movimento de migração da segunda geração já no espaço-tempo pós-colonial, a qual questiona o sucesso de integração social no país de acolhimento, ex-potência colonial. Não encontrando um ambiente de reconhecimento social isento de violência, preconceito e sofrimento, a segunda geração (crescida ou mesmo já nascida em Portugal) desloca-se para a terra natal dos pais, em busca de um espaço acolhedor da sua complexa identidade diaspórica. O que fica por saber, no final das contas, é até que ponto esses sujeitos com identidades múltiplas conseguem de facto encontrar esse espaço transformador na terra dos pais.
Em Debaixo da Nossa Pele. Uma viagem, publicado em 2017, encontramos o signo diaspórico na história familiar do narrador (possivelmente alter ego de Arena) assim como uma noção mais alargada de diáspora. Este é um livro de género híbrido – livro de viagens, de reportagem jornalística, de ensaio, de memórias, de ficção – e constitui-se como uma arqueologia, privada e pública, da presença africana na Europa. A questão da diáspora manifesta-se neste livro de variadíssimas maneiras. Quando o narrador reconstrói o percurso de várias gerações de escravos e descendentes de escravos do Vale do Sado que trabalham nos campos de arroz, quando apresenta e comenta a existência de figuras históricas africanas que adquiriram relevância social e intelectual no espaço europeu, ao longo dos séculos, quando relata as histórias da diáspora cabo-verdiana, particularmente a dos cabo-verdianos embarcados ao serviço de companhias europeias e das suas famílias a viver em Portugal, a dos cabo-verdianos que se encontram em Lisboa à espera de tratamento médico e que residem em pensões da capital portuguesa numa espécie de limbo, de um exílio inevitável, ou a dos cabo-verdianos emigrados nos EUA e suas histórias de desgraça e/ou de ascensão. E todo este mapeamento da experiência migratória cabo-verdiana reflete-se na própria experiência diaspórica do narrador. Na verdade, entre tantas histórias de deslocamentos, vemos o narrador deambular pela Lisboa contemporânea e ouvimo-lo contar a sua primeira chegada a Lisboa enquanto criança emigrante acompanhando a família no início dos anos 70, mas também a decisão de já adulto voltar a Cabo Verde, sua terra natal, e o regresso a Lisboa motivado pela morte do pai adotivo. Por fim, animado por um sentimento de autodescoberta, é durante esse tempo de regresso que o narrador enceta a viagem física até Lagos, no Algarve, com o intuito de mapear os sinais da presença africana no território português. Em traços gerais, esta livro exemplifica as tipologias diaspóricas comummente estudadas: “victim, labour, imperial, trade and deterritorialized” (Cohen 2008: 18).
Ao entrelaçar a sua própria história diaspórica, a diáspora cabo-verdiana, a genealogia ficcional de Leopoldina (uma portuguesa descendente de escravos do Vale do Sado chegados no século XVIII, que o narrador diz conhecer quase por acaso, numa conferência internacional sobre Lisboa Africana, episódio com que se inicia o livro), as vidas de diversas “personagens negras nas cortes, nas artes, nas guerras, na vida política” europeias (Ribeiro 2020a: 83) e a experiência dos ex-colonos retornados, Arena constrói uma cadeira de causas e efeitos que confere, nas suas palavras, um sentido ao “seu frágil edifício identitário” (Arenas 2017: 157). Através da viagem tanto ao arquivo da memória coletiva esquecido quanto à experiência da viagem física, o narrador procura dar sentido à sua própria experiência diaspórica no momento em que se vê confrontado com a morte do pai e se questiona sobre o que é sentir-se ou não em casa. E, neste contexto, talvez a relação com a figura paterna adotiva seja uma metonímia da relação com o país de acolhimento, na medida em que essas relações espelham ao mesmo tempo familiaridade e estranheza, proximidade e distância. Debaixo da Nossa Pele. Uma viagem impõe-se, enfim, como um exemplo de escrita reparativa, uma vez que procura unir fragmentos da história, preencher lacunas deixadas por uma ideologia desvalorizadora dos africanos no espaço europeu e, assim, mobilizar uma cidadania ativa e inclusiva.
Siríaco e Mister Charles, publicado em 2022, e vencedor do Prémio Oceanos 2023, retoma, alargando, algumas das linhas diaspóricas do livro anterior. Expandindo o jogo de história e ficção, este romance relata a vida de Siríaco, um menino escravo afro-brasileiro com vitiligo levado para a corte de Dona Maria I onde é educado. Já adulto, na viagem da família real portuguesa com destino ao Brasil em 1807, fugindo da invasão de Napoleão, Siríaco decide ficar em Cabo Verde (onde a frota faz uma breve paragem) e não prosseguir viagem até à sua terra natal. Passados 22 anos, já velho, trava amizade com o naturalista inglês Charles Darwin que, na sua viagem às ilhas Galápagos em 1832, faz uma paragem de 17 dias em Cabo Verde, registando-a no seu diário Cape de Verts. Página a página, entre capítulos que entrelaçam factualidade e imaginação (lembre-se, por exemplo, que Siríaco morre em Lisboa aos 15 anos), ficamos a saber da vida do jovem Charles Darwin, da sua viagem às ilhas Galápagos viagem e do seu fascínio pela geografia, geologia, fauna e flora do arquipélago, mas sobretudo ficamos a conhecer a experiência diaspórica de Siríaco, partilhada igualmente por outras figuras exóticas da corte de D. Maria – anões negros e índios levados (à força?) do Brasil, de Angola, Moçambique para animarem os palácios e os jardins da realeza europeia. Figuras essas imortalizadas no famoso quadro de José Conrado Roza, o pintor da corte, La Mascarade Nuptiale (1788), e que serviu de inspiração a Arena.
Tecendo história e ficção com desenvoltura, o escritor tece uma narrativa que se estende por “quase um século, desde 1786 (a chegada do escravo, ainda criança, a Lisboa, vindo de uma fazenda de cana-de-açúcar no Brasil), até 1871, ano em que Júlio, neto de Siríaco, vai a Londres visitar Darwin” (Direitinho 2022: 19). Os temas da viagem e da diáspora que sustentam as linhas temáticas deste livro permitem cruzar visões de mundo diferentes e estabelecer nexos inusitados, apresentando uma ampla reflexão sobre as consequências do colonialismo, desde o mapeamento da geografia e da diversidade do mundo natural no Atlântico Sul à violência da escravatura e à violência da conversão forçada ao cristianismo que se traduziu em apagamento das culturas e línguas indígenas e em desenraizamento e alienação. Além disso, permite também inserir a experiência colonial portuguesa no contexto imperial europeu.
As três obras de Arena discutidas aqui revelam, cada uma a seu modo, um profundo desejo de refletir sobre vários percursos diaspóricos e as suas repercussões físicas, mentais e emocionais, pondo em dialogo as perspetivas individual e coletiva, mas sobretudo um profundo desejo de compreender os desafios de se viver num espaço-tempo pós-colonial, marcado por fortes, ainda que algumas vezes subtis, resíduos de impérios aparentemente esquecidos.
Citações
“África estava presente em tudo o que faziam: nas conversas, nos passeios, nos almoços, jantares, festas. Partilhavam uma solidariedade identitária que fazia deles uma tribo perdida, despojada do seu território pelas voltas da História. […] Sobrevivia neles uma África magnífica, encantadora, inebriante, que lhes circulava nas veias, que os unia.” (A Verdade de Chindo Luz: 95)
“– Vê o seguinte: somos cerca de quatro milhões, quatro milhões de cidadãos negros a viver aqui neste Velho Continente, mas é como se não existíssemos. Ainda somos vistos como estanhos e não como europeus. Na verdade, somos uma nova realidade, somos afro-europeus. Mas já ouviste alguém referir-se a nós desta maneira? Não? Claro. Não somos reconhecidos como tal, ninguém fala de nós, a não ser em casos de tráfico de droga e criminalidade. Ou então quando somos grandes craques da bola ou ganhamos medalhas em grandes competições. Aí já somos ingleses, franceses, holandeses, portugueses…
– Mas… nós quem? – perguntou-lhe Baldo.
– Eu, tu e outros como nós. Nós que nascemos aqui, neste continente, Baldo. Olha esse pessoal aqui em volta: a maior parte já nem sabe donde é. Viveram vinte anos em Cabo Verde, outros vinte em Angola, Moçambique e o resto aqui. Mas nós sabemos. As ruas da nossa infância, as nossas escolas primárias estão aqui e não lá.” (A Verdade de Chindo Luz: 89)
“Estamos na Europa há séculos, facto que pouca gente conhece. Como escravos, padres, soldados, guarda-costas, esfoladores de cavalos, cocheiros, vendedeiras de mexilhão; imagina que chegámos a constituir dez por cento da população de Lisboa. Em Londres aconteceu a mesma coisa. Depois diluímo-nos na população branca.” (A Verdade de Chindo Luz: 101)
“Abandono a ilha onde nos últimos anos tentei retomar a vida que me faltara durante toda a minha existência de filho de emigrantes e resolver esse velho problema da minha pele identitária. Cumprindo este desejo, o tempo desta vida idealizada esgotou-se e eu embarco para retomar a outra que me espera em Lisboa. Aquela em que eu sigo as pegadas do homem que finge ser eu próprio.” (Debaixo da Nossa Pele: Uma Viagem: 50)
“Imagino a cadeia da mestiçagem que chega até ela. A imperiosa conjugação de sangues que envolve este povo obscuro do vale.” (Debaixo da Nossa Pele: Uma Viagem: 151)
“Por vezes, encontrava Marcelino de Tapuia no Pátio dos Bichos, sentado num banco, sob um grande eucalipto. A árvore e a configuração daquele local eram como uma amostra minúscula das matas da Amazónia. Lamentava não saber falar a sua língua, nem os conhecimentos de português de Marcelino serem suficientes para poderem ir além daquele diário mínimo. A imagem e a memória do índio Marcelino faziam parte do melhor que ele havia vivido durante a sua passagem pela corte. Terá sido uma das raras zonas iluminadas do seu difícil relacionamento humano.” (Siríaco e Mister Charles: 100)
“Não era esse o seu papel. Isso era para Martinho Tomás, D. Jozé, D. Ana, Benedito, Sebastião e os outros anões. A sua vida era mais sofisticada e estava noutro plano hierárquico em relação a estes. Tão pouco comungava daquela melancolia que os abraçava. Nem tinha qualquer saudade da vida ou de parentes que deixara em Angola. Na verdade, não se lembrava de alguma vez ter vivido numa aldeia africana. Tudo não passava agora de uma névoa longínqua no seu pensamento, não sobrando sequer o recorte de uma montanha, um som da sua família materna. Para D. Roza, qualquer ligação ao passado era um desperdício de tempo e sentimentos.” (Siríaco e Mister Charles: 109)
Bibliografia Ativa Selecionada
Arena, Joaquim (2000), Um Farol no Deserto. Praia, IPC.
— (2006), A Verdade de Chindo Luz. Lisboa, Oficina do Livro.
— (2010), Para Onde Voam as Tartarugas. Lisboa, Caminho.
— (2017), Debaixo da Nossa Pele: Uma Viagem. Lisboa, INCM.
— (2021), “A melancolia dos eléctricos”. https://www.re-mapping.eu/pt/lugares-de-memoria/sao-bento
— (2022), Siríaco e Mister Charles. Lisboa, Quetzal Editores.
Bibliografia Crítica Selecionada
Direitinho, José Riço (2022), “Joaquim Arena: ‘Interessa-me o acaso da História’”. Ípsilon. Sexta-feira, 5 de agosto de 2022: 17-19.
Cohen, Robin (2008), Global Diasporas: An Introduction. London, Routledge.
Fernández, María Jesús (2013), “Imigrantes na narrativa portuguesa contemporânea”, in Christian Lagarde, Ilda Mendes dos Santos, Philippe Rabaté e Ana Clara Santos (eds.), La part de l’Étranger, HispanismeS, no.1: 126-147
Ribeiro, Margarida Calafate (2020a), “Uma história depois dos regressos. A Europa e os fantasmas pós-coloniais”. Confluenze. Bologna, Vol. XII, no.2: 74-95.
— (2020b), “Viagens na Minha Terra de “outros” ocidentais”, in Margarida C. Ribeiro e Phillip Rothwell (orgs.), Heranças pós-coloniais nas literaturas de língua portuguesa. Porto, Edições Afrontamento: 291-307.
Autor(a): Patrícia Martinho Ferreira | ORCID