(1974 - )
Escritor português, nascido em Angola, já com tantos anos no estrangeiro (Macau, Londres, Amsterdão, Tóquio), quanto os vividos em Portugal, mais concretamente nos arredores de Lisboa, Ricardo Adolfo tem formação na área da Publicidade, onde aliás continua a trabalhar, embora cedo se tenha dedicado também à escrita literária e ao argumento para cinema, como modo de exponenciar as potencialidades reveladoras da linguagem, e que estão longe de esgotar-se no discurso publicitário.
Logo após a publicação do seu romance de estreia – Mizé (2006), que viria a conhecer várias edições e traduções, alguns dos principais nomes do campo literário em Portugal, a começar por António Lobo Antunes, vaticinaram-lhe um lugar de destaque na ficção portuguesa contemporânea, atendendo à forma como a escrita de Ricardo Adolfo transportava para a ficção o universo da(s) periferia(s), criando personagens marcantes, referências próprias, tensões permanentes, e utilizando uma panóplia de registos, onde sobressai a oralidade e versões hodiernas de calão.
Em entrevista recente (Adolfo 2021), o próprio escritor reconheceu que a protagonista desse primeiro romance teve muito a ver com o “cliché” do emigrante que sente falta da sua terra natal, no seu caso, dos subúrbios lisboetas onde Ricardo Adolfo escritor cresceu, após ter vindo de Angola para Portugal. O retrato que nos devolve desse meio sociocultural de formação edifica um país de memória, à distância não apenas temporal como também física, assente tanto em efeitos de verosimilhança como de imaginação.
No entanto, parece-me insuficiente pretender ver ou categorizar Ricardo Adolfo como um escritor emigrante, pelo simples facto de ele viver e escrever no estrangeiro. Do ponto de vista de estética literária, mais do que a condição sociopolítica do escritor, é revelante o facto de o seu universo ficcional ter privilegiado, até à data, personagens emigrantes que vivem peripécias, sentem perplexidades e confronta-se com desafios (mais) próprios de quem se vê a si mesmo, é olhado, ou até só ignorado, como um estrangeiro.
Em Depois de morrer aconteceram-me muitas coisas (2009), o escritor dá voz a um casal de recém emigrantes portugueses na “ilha”, uma designação evasiva para aquilo que se adivinha ser Inglaterra, e que num ritual dominical, melancólico e banal, vivido entre barracas de feira na periferia de Londres -imagina-se – , na altura de regressar a casa, acabam por perder-se, completamente desorientados naquele dédalo subterrâneo e exterior de sinais indecifráveis, abandonados à solidão da noite, que acabará por acentuar a invisibilidade e a incomunicabilidade da sua condição de imigrantes suburbanos. Toda a narrativa na primeira pessoa, de resto já anunciada no título do romance, dá acesso direto à perspetiva de quem é levado a deslocar-se diretamente do mundo suburbano em Portugal (ou de um qualquer outro país) para as periferias de outras cidades europeias, em busca de melhores condições de vida, quando não para fugir a guerras, perseguições ou catástrofes naturais.
As várias peripécias dessa pequena odisseia de anti-heróis, a braços com um círculo vicioso que parece impedi-los de superar a ex-centricidade das suas vidas banais, acabam por desviar o romance do documento o sociológico, imprimindo-lhe antes a tónica da alegoria burlesca que critica ou denuncia condições gerais de imigração e de sociedades iminentemente multiculturais, mas sempre a partir da subjetividade implicada, e por conseguinte parcial, das personagens.
De acordo com o próprio Ricardo Adolfo, aquilo a que já uma vez chamei “humor migrante” (Coutinho 2018: 140) não resultará de uma estratégia autoral premeditada; contudo, não impede, e pelo contrário estimula, que os leitores destes romances os entendam aquém e além da verosimilhança. Dessa desvinculação resulta uma maior autonomia criativa para esta forma de representação da diáspora portuguesa contemporânea, onde sobressaem, entretanto, alguns traços comuns quer à sensibilidade contrapontística do ser exilado (Said 2000), quer às expectativas e sonhos dos emigrantes, designadamente no que toca ao regresso às origens.
Em 2012, depois de vários anos a trabalhar na Holanda, Ricardo Adolfo emigrou para o Japão, tendo posteriormente sido convidado a colaborar com crónicas sobre a sua experiência na terra do sol nascente, num semanário português, repto esse que o escritor assumiu, durante algum tempo, fazendo-o num registo narrativo que continua a não ser autobiográfico, embora seja possível encontrar aspetos em comum com o sujeito narrativo que, tal como o escritor, partiu dos subúrbios de Lisboa para os subúrbios de Tóquio, tendo ambos casado com uma nativa. O livro Tóquio vive longe da terra (2015) recupera essas crónicas, indo ao encontro de um subgénero narrativo habitual a escritores deslocados que assim costumam manter uma ligação mais regular com o leitorado do país de origem. Neste caso, Ricardo Adolfo acrescenta-lhes também o registo fotográfico que foi publicando paralelamente numa página específica do Instagram, com o título mais elíptico – “Longe da terra” – que aponta logo para a excentricidade daquele país-ilha, além de recuperar o sentido que aquela expressão foi tendo em contextos de migração dos meios rurais para as cidades, designando a condição de afastamento do indivíduo relativamente à sua terra natal.
Implicitamente, o livro irá convocar essas imagens partilhadas no Instagram, ao torná-las disponíveis ao leitor do romance, através de um código QR no início de cada crónica/capítulo.
Também nesta forma de exiliência (Nouss 2016: 53) asiática, se destaca o registo humorístico que assenta no modo como o narrador vai apresentando, com modéstia e aparente ingenuidade, diferentes rituais ou costumes da sociedade japonesa. É justamente esse efeito da enunciação que acentua a ambivalência e a comicidade dos diversos processos de tradução cultural a que está sujeito/a um/a imigrante, tão distante das suas origens, como desenquadrado em termos linguísticos e socioculturais. Aliás, os esforços que o protagonista de Tóquio vive longe da terra faz de aculturação ou de des-alienação, justamente para procurar não ser julgado como um “alien”, não chegam a surtir o esperado efeito, pois não deixará de sentir o peso da sua transparência, leia-se, da sua invisibilidade ou insignificância ao olhar dos autóctones.
Sem publicar um livro há mais de sete anos, talvez pudéssemos ser tentados a pensar que a receção aos seus primeiros títulos, em Portugal como no estrangeiro, tinha sido excessivamente entusiasta, ou o ímpeto narrativo do autor demasiado fugaz. No entanto, se nos ativermos apenas a esses indicadores, estaremos a passar ao lado – subestimando-a completamente -, da diversidade ou hibridez de registos com que trabalham muitos dos autores dos dias hoje. No caso de Ricardo Adolfo, a participação em vários ateliers criativos no estrangeiro, o seu convívio com o universo do cinema, enquanto consultor criativo (vd. There is only one sun (2007), do realizador Wong Kar-Wai), e enquanto co-argumentista dos filmes realizados por Marco Martins: São Jorge (2016) e, mais recentemente, Great Yarmouth: números provisórios (2022), têm canalizado as capacidades narrativas deste escritor para a obra cinematográfica e mais uma vez para o mundo dos imigrantes portugueses em Inglaterra. Great Yarmouth, tal como acontecera com Ganhar a Vida, de João Canijo, faz-nos ver o lado sombrio, duro e sem qualquer glamour da emigração das últimas décadas. Se bem que inspirado em relatos de emigrantes portugueses a trabalhar naquela cidade, outrora estância balnear de ingleses, o filme desvia-se do documentário pela força dramática das personagens, em especial da protagonista, Tânia. O trabalho exemplar dos atores, bem assim como a direção de fotografia impregnam o argumento de um expressionismo que deixa de poder confundir-se com a realidade de partida, não porque a ignore, mas porque aquela não lhe basta enquanto artista.
Citações
“Eu sabia que não devíamos ter saído de casa. A ver televisão nunca ficaríamos apeados, mas ao fim de meia dúzia de meses na ilha, a volta das ruas altas, mesmo que desoladas, era o ritual de domingo preferido da Carla, e eu, como não queria saber, lá ia.” (Depois de morrer aconteceram-me muitas coisas: 29).
“Para ajudar à festa, a ilha andava ao contrário. Segundo me dissera um vizinho, por causa de um hábito herdado dos avós; muito dado às pancadarias, às facadas e aos assaltos na estrada, que conduziam as carroças pela esquerda, de forma a terem a direita livre para vararem quem lhes atravessasse o caminho com más intenções” ( idem: 29-30).
“De todos os habitantes da ilha que não entravam na minha categoria de gente normal, aquelas duas moças representavam o grupo que mais temia. Só os conhecia da televisão, o que era o suficiente para perceber que pouco ou nada faziam pela vida, pois andavam sempre em manifestações, protestos ou a chorar a morte de alguém, morto para vingar a morte de outro, que por sua vez matara outro alguém que já ninguém sabia ao certo quem era.” (idem: 74).
“Era a minha sina na ilha. Eu, ali ao lado, quase ao colo deles, e ninguém me via. Devia ser transparente. E não era nem uma nem duas, era sempre” (idem: 81).
“Ela [ Carla] precisava de ver que a vida na terra não era fácil como parecia vista da ilha. A distância confundia muito as coisas. Sem falar nas saudades, que faziam uma sardinha de lata saber a grelha e a carvão. Quem andava fora precisava de ter cuidado com as lembranças mentirosas.” (idem: 111).
“Achei estranho não me sentir em casa de imediato. Conseguia ler tudo, perceber qualquer um que passava, mas havia algo de estrangeiro no ar. Parecia que a terra mudara, que as pessoas estavam diferentes, mais lentas, mais escuras. Tudo parecia pobre. Limpo e ao mesmo tempo atrasado.” (idem: 188).
“Para os ilhéus, os aliens eram apenas uns bárbaros que, se não fosse o facto de conseguirem comunicar em mais do que uma língua e de conseguirem executar meia dúzia de tarefas que eles não conseguiam nem queriam fazer, seriam todos convidados a voltar para a caverna de onde tinham emigrado. Até o dinossauro que vivia no beco atrás da minha rua me parecia mais bem-vindo.” (Tóquio fica longe da terra, 19).
“ A minha mulher é japonesa e odeia que eu não seja também. Nunca fui japonês e dificilmente o serei. (…) No entanto, a sua ambição desmesurada tem alguma razão de ser: mudei tanto por causa dela que até o suor ganhou um travo a molho de soja. Todos os machos têm um cheiro padrão, dependendo da sua origem. Quando cheguei da terra, lembro-me de me perguntarem se tinha bebido. Era o aroma do bago que me corria nos genes” (idem: 21)
“Imaginei-me na terra de mala ao ombro. A descer a rua da estação armado em emigrante viajado, carregador de outros hábitos, visões de um mundo muito lá à frente, as pessoas a admirar, os comentários sussurrados e, logo de seguida, o merecido enxerto de porrada seguido de um roubo por esticão com justa causa, para aprender a não ter a mania. A terra não vive bem com a modernice ou a tolerância.” (idem: 61)
Bibliografia Ativa Selecionada
Adolfo, Ricardo ( 2006), Mizé. Lisboa, Dom Quixote.
— ( 2009), Depois de morrer aconteceram-me muitas coisas. Lisboa, Alfaguara.
— (2015), Tóquio vive longe da terra. Lisboa, Companhia das Letras.
— ( 2021), “Num dia, sou o melhor escritor do mundo, no outro sou uma tragédia” (entrevista a Mariana Maia de Oliveira, Observador, 5 de Fevereiro de 2021) . Consultável em https://observador.pt/especiais/ricardo-adolfo-num-dia-sou-o-melhor-escritor-do-mundo-no-outro-sou-uma-tragedia/
Bibliografia Crítica Selecionada
Coutinho, Ana Paula (2018), “Témoignage et récréation de la diaspora portugaise au XXème siècle : l’insoutenable pouvoir de l’humour migrant », Témoignages de la marge. Cultures de résistance (sous la direction de Anne Garrait-Bourrier et Philippe Mesnard). Paris, Éditions Kimé: 129-140.
Nouss, Alexis ( 2016), Pensar a migração e o exílio hoje. Introdução e Tradução de Ana Paula Coutinho. Porto, Ediões Afrontamento/ILCML.
Said, Edward (2000), Reflections on exile and other essays. Harvard University Press.
Autor(a): Ana Paula Coutinho | CiênciaVitae