1924-2014
Orlanda Amarílis Lopes Rodrigues Fernandes Ferreira, melhor conhecida simplesmente como Orlanda Amarílis, é um dos nomes mais sonantes e impactantes da história da literatura cabo-verdiana, particularmente como contista. No entanto, como ser diaspórico e através de uma intervenção literária também diaspórica, o seu relevo no mundo das letras jamais poderá ser definido por fronteiras nacionais. A sua vida e, por conseguinte, toda a sua obra percorrem quase um século de transições históricas e trânsitos pessoais, passando pelas últimas décadas do colonialismo português em África, as consequências e continuidades brutais deste, as ondas de emigração cabo-verdiana, e a formação do estado-nação pós-colonial, incluindo as diversas fases políticas e económicas implicadas. Neste âmbito, diáspora e trânsito na vida e obra de Amarílis encontram-se sempre profundamente entrelaçados com a vida material e metafísica do colonialismo e as múltiplas fases e reinvenções do capitalismo como estrutura racial, de gênero, sexual, e capacitista.
O trajeto de Orlanda Amarílis, como escritora e como pessoa vivendo os meandros da colonialidade, é indubitavelmente marcado pela família na qual ela nasce – uma família que integrou o pequeno grupo da elite colonial composta por intelectuais e artistas de pele clara. Filha do escritor Armando Napoleão Rodrigues Fernandes, e parente de Baltazar Lopes da Silva (conhecido como Baltazar Lopes), uma das figuras mais preponderantes da história da literatura cabo-verdiana, a sua infância assistiu de perto à formação do movimento Claridade na década de 1930, marcante para a fomentação de uma consciência nacional baseada culturalmente em novas estéticas, tanto literárias como musicais, que visavam uma quebra com normas europeias. Tal projeto integrou também uma componente linguística crucial – a utilização e, de facto, formalização da língua crioula; um processo levado a cabo por intermédio da publicação do primeiro dicionário de língua crioula, escrito por Baltazar Lopes e o próprio pai de Amarílis.
Nascida em Assomada, no município de Santa Catarina, ilha de Santiago, Amarílis completou os estudos primários em Mindelo, ilha de São Vicente, onde se graduou do então Liceu Gil Eanes, e onde terá sido colega de Amílcar Cabral. Na cidade de Mindelo, dentro dos círculos sociais e artísticos do movimento Claridade entre outros grupos, publica a sua primeira obra na revista Certeza em 1944, e conhece o militar português tornado escritor, Manuel Ferreira, com quem casou e com quem emigrou para Goa, morando na cidade de Pangim durante seis anos. Aí terminou a sua formação como professora na Escola do Magistério Primário, coincidindo com os últimos anos de presença colonial portuguesa na Índia. Neste âmbito, Amarílis não é apenas educada dentro do sistema pedagógico colonial, mas acaba por se tornar professora ao serviço de tal sistema. É de realçar, no entanto, que tais posições privilegiadas que ela acabou por ocupar dentro dos aparelhos e mecanismos colonialistas são problematizadas pelas suas ligações a movimentos culturais e políticos subversivos. Seguindo para Lisboa depois do seu tempo em Goa, conclui mais dois cursos ligados à pedagogia, residindo na Casa dos Estudantes do Império, tendo exposição ao, e eventualmente fazendo parte do, círculo de pensamento e artes anticoloniais e antifascistas.
Durante as décadas de 1940 a 60, Amarílis participou em diversos círculos literários em Portugal, publicando as primeiras obras tanto na então metrópole como em circuitos cabo-verdianos. Por exemplo, para além de contribuir regularmente para a revista Certeza, Amarílis também colaborou com revistas literárias portuguesas como a Colóquio/Letras. Apesar de os seus contos aparecerem em várias antologias e revistas importantes ao longo de décadas, as suas três coletâneas, Cais-do-Sodré té Salamansa (1974), Ilhéu dos pássaros (1983) e A Casa dos mastros (1989) constituem as peças mais impactantes e emblemáticas do seu trajeto literário. Para além do conto, género literário através do qual se notabilizou, Amarílis também publicou três romances infantis: Folha a folha (1987) em co-autoria com Maria Alberta Menéres, Facécias e peripécias (1990) e A tartaruguinha (1997).
Durante o período vivido em Portugal, coincidindo com as últimas décadas do colonialismo oficial português e do Estado Novo, Amarílis terá vivido de perto o funcionamento do regime racial colonialista, a sua aplicação na então metrópole, e os paralelos que ela enxergou, neste aspeto, entre o racismo anti-negro em Portugal e em Cabo Verde. Esta experiência é refletida e criticamente elaborada no plano ficcional na sua primeira coleção de contos, Cais-do-Sodré té Salamansa. Todos os contos que integram a coletânea relatam ou intervêm contra o tecido cultural e político anti-negro que estrutura a vida coletiva tanto na metrópole – metonimicamente articulada através do bairro lisboeta compondo a primeira parte do título – como em Cabo Verde, enunciado no título por Salamansa – o ponto mais norte da ilha de São Vicente. O título também traça uma cartografia migratória cabo-verdiana, em si entrelaçada e formada por processos históricos anti-negros, globalmente abrangentes e localmente articulados. Deste modo, Amarílis centra os mecanismos raciais imperialistas e capitalistas na história de Cabo Verde, e como estes têm impactado a vida quotidiana cabo-verdiana, local e diaspórica, começando pela negação de ontologias negras integrada na mestiçagem como ferramenta da supremacia branca, e passando pela divisão racial de trabalho no arquipélago e a nível global, a negligência financeira por parte do império português que levou à devastação ligada às secas, e os circuitos de emigração para a Europa e América do Norte também impulsionados em grande parte pela negligência colonial fundamentada na desumanização de vidas africanas. Através dos contos reunidos na coleção podemos enxergar esta visão longa da história colonial e do regime racial nos seus legados estruturais tanto em Cabo Verde como em Lisboa nos anos 60, na década crepuscular do projeto imperial português.
A significativa componente diaspórica da coletânea debruça-se portanto nos processos históricos que impulsionaram o movimento migratório em massa do arquipélago para a Europa e para a América do Norte, sem nunca separar tais ondas de emigração da história da diáspora africana não só de Cabo Verde, mas também para Cabo Verde através do comércio transatlântico de pessoas escravizadas, sendo o arquipélago tanto um ponto fundamental na cartografia deste comércio como um produto dele – isto é, um projeto colonial cuja base laboral e ideológica era a escravização de pessoas africanas e a negação da sua humanidade. Os séculos de desprezo colonialista juntamente com a exploração económica sancionada pelo estado português, ambos baseados na e reprodutores da desumanização de vidas africanas, engendraram as condições materiais que viriam a ser reinventadas após a abolição da instituição escravocrata, sem nunca aniquilar a estrutura social de raça e cor que os projetos da expansão europeia e o comércio escravocrata inauguraram.
Diante deste mundo colonial e pano de fundo diaspórico em multicamada, as personagens elaboradas na obra de Amarílis lidam com contextos anti-negros enquanto forjam modos de ser, saber, e desejar perante os diversos aparelhos e legados coloniais que se esforçam para lhes negar estas possibilidades. No contexto de Cais-do-Sodré té Salamansa, os vários contos que retratam vidas e trajetos africanos em Portugal, oferecem uma importante perspetiva crítica e refutação à histografia dominante portuguesa acerca do seu projeto imperialista – as narrativas lusotropicalistas que visaram e impuseram um revisionismo da história colonial enquanto articularam uma nação sincreticamente pluricontinental e multirracial, sobretudo no panorama político internacional, face à pressão global para a Europa descolonizar o continente africano. Através de personagens e intervenções diegéticas, estes contos sublinham as estruturas raciais e práticas quotidianas racistas que pervadem a sociedade portuguesa e o trajeto histórico da nação pós-colonial, ainda hoje.
As coletâneas subsequentes, Ilhéu dos pássaros (1983) e A Casa dos mastros (1989), localizam-se e centram-se também em ondas migratórias de Cabo Verde, não meramente como uma nação pós-colonial, mas como uma nação profundamente moldada pelas cartografias e dinâmicas diaspóricas traçadas acima. Este aparente enfoque, que é sempre transnacional e global, permite uma abordagem mais complexa acerca das relações históricas e duradouras entre os legados do colonialismo português, o comércio escravocrata, o racismo anti-negro global (enfrentado por personagens em Cabo Verde, Portugal, França, e Estados Unidos), e as relacionadas estruturas patriarcais que perduram, sobretudo no que diz respeito às intersecções de formações discursivas de raça, cor, género, sexualidade e classe social. Ambas as coleções elaboram um leque complexo de personagens e narradoras femininas, figuras tanto trágicas como resistentes, vivas e falecidas. Em A Casa dos mastros, outra fronteira – entre vida e morte – é atravessada e embaciada através do ato narrativo póstumo, sendo as narradoras de dois dos contos – “Laura” e “A casa dos mastros” – mulheres cabo-verdianas falecidas, o que configura a morte feminina como espaço tanto materializado pelas estruturas raciais e patriarcais como reapoderado para o ato transgressivo de inscrever e historicizar eventos e mundos a partir de óticas críticas e vivências femininas. Através de diversos atos de transgressão contra as mencionadas estruturas raciais, económicas e de género dentro dos tecidos diegéticos criados nos contos e articulados pela ação narrativa, ambas as coletâneas contribuem para um espaço e um arquivo de produção epistemológica e cultural feminista africana e afro-diaspórica que visam novas formas de ser e saber dentro, contra, a para além de um mundo colonial, patriarcal e capitalista.
Citações
“Tinham mantido um flirt por longo tempo. Uns beijos, umas coisas sem importância, no entanto, nunca tomadas a sério. Sempre pensara terminar o curso e voltar para Cabo Verde, onde casaria com uma crioula sabe-de-mundo […] Nunca casaria com ele. Aborrecia-a a ideia de vir a ter filhos de cor” (“Nina,” Cais-do-Sodré té Salamansa: 23).
“Nunca conseguiu enfrentar os clientes sabidos e desnudaram-na com os olhos lascivos. Quando isso acontecia corava e tremia” (“Encanto”, idem: 42).
“Eles sabiam mãe Ana, sabiam, isto é, desconfiavam, mas eu sou emigrante. Emigrante é lixo, mãe Ana, emigrante não é mais nada” (“Thonon-Les-Bains”, Ilhéu dos pássaros: 25).
“Se adivinhasse o que estava para me acontecer, por certo teria adiado o meu encontro com a Laura… Sempre gostou de me pregar umas partiditas, e a última foi, decerto, a mais bem concebida: o nosso encontro na Praça de Londres” (“Laura”, A casa dos mastros: 75).
Bibliografia Ativa Selecionada
Amarílis, Orlanda (1974), Cais-do-Sodré té Salamansa. Lisboa, Centelha.
— (1982), Ilhéu dos pássaros. Lisboa, Plátano Editora.
— (1989), A casa dos mastros. Linda-a-Velha, ALAC.
–/ Maria Alberta Menéres (1987), Folha a folha.
— (1990), Facécias e Peripécias.
— (1997), A Tartaruguinha.
Bibliografia Crítica Selecionada
Abdala Junior, Benjamin (2002), “Globalização, Cultura e Identidade em Orlanda Amarílis.” Portuguese Literary & Cultural Studies 8: 213-26. Print
McNab, Gregory (1987), “Sexual Difference: The Subjection of Women in Two Stories by Orlanda Amarílis.” Luso-Brazilian Review 24 (1): 59-68. Print
Pazos-Alonzo, C. (2005), “Race and Gender: Orlanda Amarílis’s Cais do Sodré té Salamansa.” Lusotopie: Recherches politiques internationales sur les espaces issus de l’histoire et de la colonisation portugaises. 7(1-2): 45-53.
Passos, Joana (2023), “From Archipelago to Western Metropolis: Migrants’ Stories by Orlanda Amarílis and Jamaica Kincaid.” Luso-Brazilian Review. 60 (2): 158-181.
Simões, Diana (2018), “Narração post-mortem em A casa dos mastros, de Orlanda Amarílis: trauma pela lente marginal das mulheres cabo-verdianas.” Literartes 9: 95-118.
— (2020), “A Diáspora como Base da Identidade Cabo-Verdiana em Ilhéu dos Pássaros, de Orlanda Amarílis, e Chiquinho, de Baltasar Lopes.” Portuguese Literary and Cultural Studies 33: 154-176.
Autor(a): Daniel F. Silva | Univ. Middlebury