(1932- )
Vimala Devi é um nome hindu que foi adotado literariamente por Teresa da Piedade de Baptista Almeida, nascida e criada no meio católico da antiga Índia portuguesa (veio à luz na vila de Penha de França, no norte de Goa, em 1932). Poeta e contista, será talvez o exemplo mais interessante daquilo que Susana Sardo designou como o “mimetismo regrado” dos goeses, por com essa escritora se poder verificar os termos da formulação num contexto de diáspora e já finda a dominação imperial portuguesa (1510-1961) – esta última situação era o que obrigava, de facto, a uma permanente tentativa de reconfiguração identitária, pelo menos se dermos a devida importância aos debates ocorridos no seio das elites locais ao longo da história de Goa. A ideia de Stuart Hall já tornada clássica da “identidade cultural” associada à da “diáspora” pode muito bem ser aplicada ao caso dessa autora – quanto à primeira, destaque-se que:
[l]onge de se fundarem numa mera “recuperação” do passado, que está à espera de ser descoberto e que, uma vez encontrado, assegurará para todo o sempre a estabilidade do nosso sentido de nós próprios, as identidades são os nomes que damos às diferentes formas como somos posicionados pelas narrativas do passado e como nos posicionamos dentro delas.
Só a partir desta […] posição podemos entender adequadamente o carácter traumático da “experiência colonial”. (Hall 2006: 24)
Quanto à “experiência da diáspora”, o teórico não a define a partir de uma “essência ou pureza” integrada numa dinâmica de binariedade ou conflito, mas sim, como é notório, da ocorrência inevitável de “hibridismo” (Hall 2006: 33). No entanto, a obra da escritora goesa e o contexto do meio de que emergiu convidam-nos a olhar com atenção para determinadas particularidades: se, por um lado, como afirma agora Paulo de Medeiros, existem “muitas formas de hibridez” e “a celebração da hibridez” – por exemplo, no que respeita ao luso-tropicalismo – “pode, ao contrário de assumir os laivos libertários e transgressivos advogados por [Homi] Bhabha e muitos outros na sua esteira, ser usado exatamente para mascarar as condições de exploração e expropriação material e cultural a que os colonizados eram sujeitos” (Medeiros 2006: 346-347), por outro, a “experiência colonial” aqui em causa é condicionada pelo formulado logo no início. Com efeito, a escritora faz parte
de uma elite que se enquadra claramente no conceito de mimetismo proposto pela teoria do pós-colonialismo. Porém, no caso dos goeses, trata-se de um mimetismo regrado, um mimetismo instigado pelos portugueses, aceite pelos goeses mas controlado por ambos. A proximidade com os estereótipos de portugalidade, propostos pelos portugueses com as regras a que a postura colonial obrigava – suficientemente portugueses, mas sem deixarem de ser indianos – era também controlada pelos goeses, ou seja, a proximidade com os portugueses era conveniente, tinha algumas vantagens sob o ponto de vista económico e social, mas não deveria ultrapassar algumas fronteiras que pusessem em causa a própria goanidade. (Sardo 2011: 118)
A assunção pela autora, cristã, de um pseudónimo literário hindu (Vimala Devi, observe-se, significa “Deusa da pureza” em sânscrito), é já ela própria um exemplo nítido desse “controlo”, embora a poeta e contista tenha desvalorizado, em entrevista, a questão:
[os portugueses] queriam Goa como um grande apoio nessa parte de Oriente que eles necessitavam, então fizeram todos os esforços para transmitir os valores da cultura portuguesa aos goeses e muitos foram cristianizados, as populações hindus foram cristianizadas, e tiveram privilégios por isso, e passaram a ter nomes portugueses, porque Vimala Devi não é o meu nome. É Teresa. Teresa! Isso foi ideia do Manuel [Manuel de Seabra, português, marido da escritora] posteriormente, porque quando publiquei o meu primeiro livro de poesias, Súria, e o Manuel disse: «Nós aqui temos muitas Teresas, mas tu tens de ter um nome que possa identificar mais o teu primeiro livro», que era muito com ambiente de Goa, sobre temas de Goa. Então escolhemos este «Vimala Devi» e que resultou, porque, com esse pseudónimo, o grande crítico português Gaspar Simões dedicou toda uma página de crítica ao meu livro. Foi o que lhe chamou a atenção, através daquele pseudónimo, e isso foi o meu lançamento no meio literário português. (Spina 2019: 336-337)
Foi, portanto, já em diáspora que Teresa não apenas assumiu o pseudónimo Vimala Devi, como também começou a publicar os seus livros. Residiu de 1958 a 1962 em Lisboa, instalando-se em seguida em Londres por dez anos (não sem ter experimentado viver com o marido um tempo no Brasil) e acabou por se radicar definitivamente em Barcelona em 1973. As duas obras que sempre mereceram mais atenção por parte tanto da crítica quanto da academia são as únicas da sua relativamente substancial produção literária que abordam Goa e refletem o imaginário acerca deste território do sudoeste da Índia que construiu enquanto emigrante: a coletânea de poemas Súria (1962) e a recolha de contos Monção (1963), esta última aumentada na edição de 2003. A receção atual a essas duas obras não deixa de apontar um semelhante substrato: no caso de Súria, pode-se afirmar que “é um livro de exílio e uma elegia por Goa” (Braga 2019: 125), assim como em Monção “Devi retrata o processo traumático de ver a Goa de seus ancestrais e de sua própria infância e juventude sumir no passado” (Festino 2020: 433). É curioso constatar uma clara cedência ao discurso luso-tropicalista do brasileiro Gilberto Freyre na primeira e o modo como olha severamente para as relações intersociais em Goa e certas situações coloniais na segunda; o pendor orientalizante da primeira contrasta com a nítida desconstrução de estereótipos orientalistas da segunda. A própria obra de carácter investigativo que escreveu com o marido, Manuel de Seabra, A Literatura Indo-Portuguesa (1971) – premiada pela Academia de Ciências de Lisboa no ano a seguir ao seu lançamento e uma referência ainda hoje no âmbito dos estudos dessa literatura –, é enquadrada sob a perspetiva freyriana, com o primeiro capítulo expondo considerações do sociólogo. Repare-se que Súria (nome do deus védico do sol) foi publicado pela Agência Geral do Ultramar, enquanto o trabalho historiográfico sobre a literatura de Goa saiu sob a chancela da Junta de Investigação do Ultramar. De qualquer modo, em Monção, “embora nunca abertamente anticolonial e olhando para o passado com nostalgia, Devi recria de maneira crítica a pequena nobreza católica goesa, ao tempo que expressa sua profunda empatia com o subalterno goês” (Festino 2020: 433-434), sendo ainda importante sublinhar que nos contos ali reunidos, através de “uma espécie de desfile de figuras de segundo plano, de figuras não excecionais de que a sociedade é em sua esmagadora maioria composta”, não se encontra “uma só visão privilegiada de Goa, mas uma pluralidade de visões limitadas” (Castro 2019: 21). Em Súria, para além de uma profunda simpatia para com a casta baixa dos agricultores do entorno cristão de Goa, há lugar para a experiência amorosa e, efetivamente, uma demarcada saudade pelo torrão natal. Em Monção, as histórias desenrolam-se tanto no meio católico como no meio hindu, no dos portugueses lá instalados e no dos goeses emigrados para África ou Portugal.
Vimala Devi vai seguir publicando poemas e contos, mas totalmente afastados do universo sociocultural goês e revelando pontes com o surrealismo e a poesia concreta. Não sem razão já se tinha apontado “o primeiro traço característico do seu percurso literário” como sendo uma sua “espantosa capacidade de se reinventar”: “o legado literário de Vimala Devi é muito mais variado e experimental do que a inclusão num único quadro de recepção crítica poderia sugerir” (Passos 2011: 210-211), como, por exemplo, o “pós-colonial” e/ou o “diaspórico”.
Citações
“Chamdrîm”
Vem, Chamdrîm feiticeiro, com a tua luz concreta,
Transformar as casas de churtas1 em casas de prata,
E deixar que os farazes2 penetrem oiteiros
Em busca de bambus com que tecer sobrevivência!
O Mandovi e o Zuari3, fios de lágrimas salgadas,
Abrigam deuses tisnados e humildes,
Que nas noites escuras regressam tristes
Com alforrecas nas redes e com as tonas vazias.
Vem, Chamdrîm, rei do firmamento nocturno,
Perolizar, com as tuas tintas mágicas,
Os troncos nus de curumbins4 crestados pelo sol
– Velas derretendo no perene meio-dia!
Vem rasgar o mistério das aldeias moribundas
Onde serpentes venenosas mordem a noite.
A morte espia os camponeses, no regresso das várzeas,
Banhados em suor de terra – com olhos nos pés!
Vem, Chamdrîm, alumiar poços e regatos,
Onde mainatos5, vergados, lutam com a imundície.
Sem ti, o sol tropical ardia crânios…
Por isso, Chamdrîm, és o deus dos pobres!
(Súria: 11-12)
“Goa”
Na madrugada de lágrimas e esperanças,
Teu pranto é o meu.
De ti vem um apelo
Dolorido e ancestral.
No meu pensamento serás sempre
O eterno sonho luso
– Comunhão de mosteiros e pagodes.
O Súria divino
Esconde-se tímido
Cobrindo de luto
Teus rios e prados!
Calam-se murdangas e batuques;
Mandós são lamentos
Do folclore em agonia. . .
Teu brado de protesto,
Como eco abafado,
Guardarei no sorriso
Que me deste em criança,
E a tua expressão de luar
Na noite de amor mais fundo
Será o meu único enlevo
No sonho da noite imensa.
Envolta em odor de sândalo,
Serei a voz da consciência:
A voz de dois mundos!
(Súria: 27-28)
“Sempre a mesma dificuldade, a língua! Em casa só falavam concani, na aldeia ninguém sabia português e, em criança, antes da escola primária aprendera o marata! Que poderia fazer em Goa, excepto o mesmo que seu pai e, como ele também, nos intervalos, ser teatrista, amador improvisado de nâttkan?”
(Monção: 22)
“Só não gosto nada que vocês dancem com os paclé6. Porque não dançam só com os nossos rapazes? Os paclé não têm moral e dão mau nome às raparigas, sabes bem!”
“Nisso tens razão”, respondeu Mitzi, muito séria. “Nossos rapazes são tão diferentes dos paclé. Tu achas-me capaz de casar com um deles? Além disso, eles aqui fazem figura, mas quando estão na Europa são uns pelintras. E estúpidos, não reparaste ainda? Nossos rapazes são muito diferentes e quando casam é para toda a vida. Eles mudam de mulher como quem muda de camisa… Preferia casar com um sudra7 do que com um pacló!
(Monção: 63-64)
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1 Folhas de palmeira.
2 Servidores de casta baixa.
3 Rios de Goa.
4 Agricultores (casta baixa).
5 Lavandeiros (casta baixa).
6 Portugueses.
7 A casta mais baixa, no meio tanto hindu quanto católico.
Bibliografia Ativa Selecionada
Devi, Vimala (1962), Súria, Lisboa, Agência Geral do Ultramar.
– (1963), Monção, Lisboa, Dédalo.
– (1969), Hologramas, Coimbra, Atlântida Editora.
– (1970), Telepoemas, Coimbra, Atlântida Editora.
– (1991), Hora, Barcelona, El Ojo de Polifemo.
– (1992), Rosa Secreta, Barcelona, El Ojo de Polifemo.
– (1995), El Temps Irresolt, Barcelona, El Ojo de Polifemo.
– (2000), Éticas-Ètiques, Barcelona, El Ojo de Polifemo.
– (2000), Musono, trad. Manuel de Seabra, Estocolomo, Al-fab-et-o.
– (2002), Monsó, trad. da autora, Vilanova i La Geltrú, El Cep i La Nansa.
– (2003), Monção, 2ª edição ampliada, Lisboa, Escritor.
– (2008), A Cidade e os Dias, Lisboa, Edições Leitor.
– (2019), Monsoon, trad. Paul Melo e Castro, Londres/Nova Iorque/Calcutá, Seagull.
– (2019), Mousson: contes de Goa, trad. Daniela Coutinho Preizal, Aix-en-Provence, Le Poisson Volant.
Devi, Vimala e Seabra, Manuel de (1971), A Literatura Indo-Portuguesa, Lisboa, Junta de Investigação do Ultramar.
Bibliografia Crítica Selecionada
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– (2019), “Em torno do fim: Goa tardo-colonial no ciclo de contos Monção (1963) de Vimala Devi”. Via Atlântica, v. 20(2): 15-41.
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– (2020), “Devi, Vimala. Monsoon. Tradução Paul Melo e Castro. Introdução Jason Keith Fernandes. London, New York, Calcutta: Seagull, 2019”, Via Atlântica, v. 21(1): 431-439.
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Xavier, Ângela Barreto (2008), A invenção de Goa: poder imperial e conversões culturais nos séculos XVI e XVII, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais.
Autor(a): Everton V. Machado | Ciencia Vitae