(1979- )
Yara Monteiro, escritora de nacionalidade portuguesa e ascendência angolana tem se destacado no mundo literário luso-angolano contemporâneo pela sua voz autêntica, fruto duma herança diaspórica. A memória e a pós-memória são o motor da escrita audaz de Yara Monteiro que em 1981, com dois anos, chegou a Portugal de Huambo, o planalto central de Angola, junto com os avós, a mãe e uma tia. A formação em Recursos Humanos levou-a em 2005 a trabalhar em Luanda, movida pelo fim da Guerra Civil em Angola (2002) e pela busca da outra identidade complementar da sua “mátria Angola” (Monteiro 2023).
É este percurso entre os dois mundos que tece o pano de fundo do seu primeiro romance Essa Dama Bate Bué (2018). Tal como a autora, a personagem principal do seu livro, Vitória Queiroz da Fonseca tem uma trajetória de retorno às origens. A Vitória é uma mulher lésbica, negra, filha de mãe angolana. Volta para o país que a viu nascer em busca da mãe que nunca conheceu e em busca de si própria. Guerrilheira das trincheiras da luta armada angolana e da vida no colonialismo e pós-colonialismo, “a mãe Rosa sempre tivera um espírito livre e de revolta à opressão” (11). Foi a luta pela justiça e a rebeldia da juventude roubada de tantas gerações que determinaram a mãe militar contra e mais tarde levantar as armas face aos abusos do colonialismo. Nas vésperas do começo da luta armada em Angola (1961), Rosa, mãe da Vitória, como tantas/os outras/os fez panfletos, participou de protestos e, por fim, integrou a luta armada em prol da independência nacional. A filha de assimilados via os abusos perpetrados tanto pelo colonialismo como pela própria estrutura da sociedade angolana tradicional. Decidiu fazer frente a isso e, ao longo de anos à fio, lutou ao lado de homens e muitas outras mulheres para construir um futuro livre de colonialismo e de opressão do homem pelo homem. O livro traz uma crítica óbvia ao colonialismo, ao mesmo tempo que consegue apresentar e questionar o futuro deste país em transição, em pós-guerra pela libertação, mas também pós-guerra civil.
Yara Monteiro tem a capacidade de trazer para este livro uma plêiade de retratos femininos pouco ou não-explorados ainda na literatura escrita em Angola e sobre este país. Desde a mulher lésbica à procura da mãe e das suas raízes identitárias angolanas, metáfora da busca por uma identidade nacional, até à mulher guerrilheira, personificada na figura da mãe Rosa, epitome de gerações de mulheres que lutaram na luta pela independência nacional angolana de arma na mão ou desempenhando inúmeros papéis na retaguarda da mesma luta. Não faltam as antigas companheiras de luta da mãe, que no período pós-independência não encontraram o seu lugar na nova sociedade que pareceu esquecer o seu contributo na luta; relegadas para as antigas funções domésticas e maternas, estas mulheres demonstram o mesmo determinismo de sempre na criação duma nova vida. Elas são as mulheres que fazem andar, que tentam normalizar o dia a dia do caos do palco luandense e estão numa permanente luta pela sobrevivência das suas famílias. Todas são as “damas que batem bué”, que lutam, batalham, perguntam, respondem, buscam, inquietas, fortes, rijas, novas, velhas, no corpo da cidade, cerne dos ideais desta nação.
Mas a dama suprema é a cidade de Luanda. A capital quase personifica o corpo da nação com as suas aspirações, dores, alegrias e ideais. Em continua transformação a cidade não é convidativa. De dia o “útero de poeira e cimento” (2018: 28)” engole, mastiga e cospe quem nela pisa muito pedindo e pouco oferecendo. No entanto, à noite esta “grande dama” é kamba, isto é amiga, irmã, companheira, que abarca todas/os no embalar dum sonho para uma vida melhor. Yara Monteiro deu o passo à frente e impregnou a discussão sobre a cidade de questões de género, raciais e de poder, questionando o futuro da nação através do passado das suas mulheres. Talvez pela primeira vez na literatura sobre Angola uma mulher escreve um livro cuja personagem principal é uma mulher em busca duma outra mulher, sendo o enredo, na sua maioria, sustentado por outras personagens femininas. Desta forma, a mulher ganha o lugar privilegiado que nunca teve nas falas sobre a luta pela libertação nacional angolana. Por isso, o livro tem o grande mérito de problematizar a participação da mulher angolana na construção da luta e da nova nação a partir de várias funções, para além da de guerrilheira.
Quase parece que esta(s) histórias só poderiam ter sido contadas com olhos de fora, a partir da diáspora, pois Luanda contém em si identidades em trânsito. Como a própria cidade, as/os autoras/es diaspóricas/os são definidos e formados por estas “identidades em trânsito”, para parafrasear a Yara Monteiro (2021); identidades (in)formadas pelos espaços que os viram nascer e crescer, identidades sempre num movimento interno gerido pelo perpassar pelos vários mundos exteriores, pelas múltiplas nacionalidades, lugares de fala e lugares imaginados. A Vitória do livro, tal como a Yara do mundo real, encontra uma Angola muito diferente da Angola retratada pelos avós. É onde a comunidade imaginada, construída na diáspora, se desvanece, sendo substituída por uma realidade muito dura, repleta de choques emocionais e de novas aceitações. A medida que a Vitória descobre a história de vida da mãe, o próprio nascer como fruto duma possível violação por um outro guerrilheiro, começa a aceitar as escolhas da mãe. Este encontro entre a pós-memória, como memória partilhada pelos familiares próximos, a memória das pessoas que participaram da luta armada e a sua própria experiência em Angola atual, cria as camadas que constituem a identidade, assim como vivida por cada um/a em Angola e na diáspora angolana.
A exploração da feminilidade, da dualidade identitária e social, da conexão feminina com o mundo, com o passado, com as raízes, continua também no primeiro livro de poesia da autora Memórias, Aparições, Arritmias (2021). Este livro de poesia é um belo objeto criado com cuidado, atenção, com corpo e alma. Poemas escritos ao longo do tempo, mas muitos também durante a pandemia, quando a autora cuidava da sua avó doente, os textos e as fotografias que as acompanham demonstram uma maturidade criativa que está a brotar numa diversidade de explorações artísticas. Yara fez, ela própria, as fotografias do livro e pensou a estrutura do mesmo, num desejo de expandir a sua criatividade artística, enquanto não só escritora, mas também artista plástica. Para além da sua escrita, Yara trabalha com fotografia, vídeo, colagem e performance.
A intimidade e o à vontade que sente consigo própria a ajudam explorar a condição feminina e a manter-se autêntica nas suas escolhas e explorações artísticas. A ligação com a avó lembra o elo migratório, da raiz que inspira, que dá a base para potencializar as energias femininas sagradas de todas mulheres que vieram antes, das criadoras que jazem em cada uma de nós, enquanto berço do próprio crescer e amadurecer, mas também duma mãe universal, guardiã dos equilíbrios naturais. Identificado pela crítica, mas também autodefinido como um livro eco-feminista Memórias, Aparições, Arritmias chamou rapidamente a atenção sendo galardoado com o prémio Glória de Sant’Anna (2022).
A sua preocupação pela condição diaspórica e as suas múltiplas passagens, desde Angola até Portugal, passando por Brasil, a fizeram curar um podcast de quatro episódios sobre “questões de cidadania e mobilização social da mulher em África e na diáspora.”
A sua presença em festivais internacionais como o Fliaraxá, no Brasil, ou o Afrolit Sans Frontières, e em inúmeros outros encontros e entrevistas, mostram a curiosidade que os livros suscitaram, a necessidade de estes existirem num contexto de mais expansão e abertura para com memórias e pós-memórias trans-territoriais.
O percurso literário e artístico de Yara Monteiro ajuda-nos a entender como se autoidentifica; contudo o seu verdadeiro contributo está na interpelação que consegue fazer dos seus países de origem e de adoção. Os livros de Yara não são seus, nem de Angola, nem de Portugal, mas de gerações de netas, netos e avós cuja histórias de vida foram atravessadas pelas tramas do (pós)-colonialismo, da (pós)independência e da pós-memória.
Citações
“Rosa Chitula, minha mãe, mais do que a mim, amou Angola e por ela combateu. Chamo-me Vitória Queiroz da Fonseca. Sou mulher. Sou negra.” (2018: 9)
“O avô António considerava-se assimilado e, acima de tudo, português. Via a implosão do nacionalismo como uma reviravolta insidiosa contra a serenidade colonial. No entanto, ficava pasmado com a atitude de Portugal: lavara as mãos. (…) A mãe Rosa sempre tivera um espírito livre e de revolta à opressão. A sua insurreição ao imperialismo começou a acerar-se à medida que a radio e os jornais iam deixando de ignorar os saques desordenados, as violações, os raptos e o aumento da tensão entre brancos e negros. (…) Debaixo do colchão da filha, encontrou panfletos. Após os mostrar à avó e a culpar pelos maus princípios da Rosa, destruiu-os. Achou por bem evitar o pleito e nada disse à filha.” (2018: 11-12)
“De Luanda, já tinham começado a partir famílias inteiras para Lisboa. Mesmo assim, o avô António acreditou que a boa aventurança estaria do seu lado e decidiu dar seguimento às lojas e aos camiões que sempre tivera em Nova Lisboa.
Da desgraça da vida fez uma oportunidade. Trabalhava com os dois lados do conflito político e assim pretendia continuar até que a providência salvaguardasse o seu segredo. A cor do meio colocara-o num mundo intermédio. Para uns, não era negro o suficiente e, para outros, precisava de aclarar a pele. Venerava os portugueses e tolerava os outros. Brancos e negros cumprimentavam-no cheios de salamaleques.” (2018: 13)
“A mãe esteve desaparecida por mais de quinze anos. Quando reapareceu, foi para me entregar aos meus avós. Eu tinha dois anos de idade, e, depois disso, não mais soube dela.” (2018: 14)
“Num último abraço de despedida, os braços trocaram de corpos, os rostos trocaram de olhos, que trocaram de alma.
Com lamento, e apesar das promessas bem-intencionadas do meu avô, as mulheres sabem que não se vão voltar a ver. Quando se foge da guerra, só se leva o peso que se consegue carregar. No caso, dona Bia, Hermínia e Cândida eram excesso de carga para os Queiroz da Fonseca. A partida da nossa família arrasta consigo o ónus da morte de quem nos deu a vida, mas agora decidimos deixar para trás.” (2018: 17)
“’A guerra engole-nos a dignidade antes mesmo de nos tocar a pele’, lamenta-se António em silêncio, enquanto olha para a árvore.” (2018: 17)
“Agarrada ao rosário, a avó contorna a árvore e repete a frase, mas sem convicção. Recusa-se a esquecer a filha Rosa e Angola.” (2018: 21)
“- A mãe era combatente. A minha família não sabe nada dela desde o final dos anos setenta.
– Muitas camaradas lutaram por este país. Heroínas.” (2018: 99)
“(…) Luanda é como uma mulher complicada que não se esquece. Não é verdade? De uma maneira ou outra você quer sempre voltar.” (2018: 113)
“A senhorita Vitória Queiroz da Fonseca procura a sua mãe, Rosa Chitula Queiroz da Fonseca, e a sua tia Juliana Tijamba. (…) Vamos unir esta família minha gente! A paz traz a união das famílias. Continue connosco na frequência 93.5 FM…” (2018: 127)
“Na família da Vitória nunca se falou da guerra em Angola. É tabu.” (2018: 154)
“- O que faço?
– O que achares que é melhor para ti. Pode parecer estranho, mas, aqui, te queremos todos bem. Espera, Vitória. Espera só. És de um povo que ainda está à espera, que espera, sempre.” (2018: 206)
PREVISÃO DO TEMPO
Tranço o cabelo
dizem
quero parecer mais preta
Faço brushing
dizem
quero parecer mais branca
Na frente quente vinda do hemisfério sul
os caracóis secam desordenados
perguntam
quero parecer de onde?
«Eu sou de onde estou.»
Bibliografia Ativa Selecionada
Monteiro, Yara (2018), Essa Dama Bate Bué!, Lisboa, Guerra e Paz Editores.
— (2019), “Mar Fronteira” em Jogos sem Fronteiras. Online em: https://www.buala.org/pt/jogos-sem-fronteiras/mar-fronteira
— (2020), “Papéis velhos” em Newsletter Memoirs. Filhos de Impérios e Pós-Memórias Europeias. Online em: https://www.buala.org/pt/a-ler/papeis-velhos
— (2021), “As pedras também falam” em Remapping Memories. Online em: https://www.re-mapping.eu/pt/lugares-de-memoria/padrao-dos-descobrimentos
— (2021), Memórias, Aparições, Arritmias, Lisboa, Companhia das Letras.
Site: https://yaramonteiro.com/
Bibliografia Crítica Selecionada
Entrevistas e materiais vídeo/áudio
1. Viver e escrever em trânsito: entre Angola e Portugal (parte 5). https://www.youtube.com/watch?v=hFDRNKffGhc
2. “As minhas raízes são africanas e as minhas asas são europeias”, entrevista a Yara Monteiro por Doris Wieser. https://www.buala.org/pt/cara-a-cara/as-minhas-raizes-sao-africanas-e-as-minhas-asas-sao-europeias-entrevista-a-yara-monteiro
3. Memórias Aparições Arritmias, de Yara Nakahanda Monteiro (Companhia das Letras, 2021) por Doris Wieser. https://www.buala.org/pt/a-ler/memorias-aparicoes-arritmias-de-yara-nakahanda-monteiro-companhia-das-letras-2021
4. Todavia ao vivo — Lançamento de ESSA DAMA BATE BUÉ!, de Yara Nakahanda Monteiro. https://www.youtube.com/watch?v=9DGEkIdpE0k
5. ConSensual #2: Yara Monteiro – Literatura (Audio Podcast); https://www.youtube.com/watch?v=H3Hv9ebSB7g
6. Radio Mukaji. https://yaramonteiro.com/#podcast
Artigos
Pimenta, Susana (2022), “O Mestiço na “Urgência de Existência”. Essa Dama Bate Bué! (2018), de Yara Monteiro” em Comunidade e Sociedade nº 41. Online em: https://journals.openedition.org/cs/6634
Sousa, Sandra (2021), “Violências Silenciadas No Feminino: Uma Leitura De Essa Dama Bate Bué! De Yara Monteiro” em Mulemba v.13. Online em: https://revistas.ufrj.br/index.php/mulemba/article/view/51058/27806
Vasile, Iolanda (2021), ““Essa Dama Bate Bué” Și Canonul Literar Angolez / “Essa Dama Bate Bué” E O Cânone Literário Angolano” em Studia Philologia nº. 4. Online em: http://studia.ubbcluj.ro/arhiva/abstract.php?editie=PHILOLOGIA&nr=4&an=2021&id_art=18977
Autor(a): Iolanda Vasile | CiênciaVitae