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Isabela Figueiredo

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(1963 - )

Isabela Figueiredo nasceu na cidade de Lourenço Marques, atual Maputo, capital de Moçambique, em 1963. Filha de portugueses, migrou para Portugal aos 12 anos, em 1975, ano da independência de Moçambique. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas (Estudos Portugueses), na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, foi professora de português no ensino secundário e especializou-se em Estudos sobre as Mulheres na Universidade Aberta. Entre 1988 e 1994, Isabela Figueiredo exerceu a atividade de jornalista no Diário de Notícias, coordenando o suplemento DN Jovem.

A partir de 2005, o trabalho de escrita no blogue O mundo perfeito apresenta as primeiras reflexões de Isabela Figueiredo sobre questões referentes à colonização portuguesa em África, à sua infância em Moçambique e posterior migração para Portugal, temas que seriam desenvolvidos posteriormente em dois romances: Caderno de memórias coloniais (2009) e A gorda (2016). Ainda em 2009 iniciou um novo blogue, chamado Novo Mundo, em atividade até 2022, ano em que a autora publica também seu último romance até então, Um cão no meio do caminho, narrativa que se distancia dos livros anteriores, mas que ainda traz questões referentes à sociedade portuguesa pós-25 de abril, como por exemplo a condição dos “retornados” e da emigração de portugueses para outros países da Europa ou mesmo para Angola.

Caderno de memórias coloniais projeta o nome de Figueiredo no cenário da literatura portuguesa contemporânea, já bastante atravessado por obras que abordavam a Guerra Colonial, a descolonização dos territórios africanos e a condição dos retornados. No entanto, a narrativa de Figueiredo trouxe novas problematizações para tais temas, não sem polêmicas diante de um público leitor acostumado a uma versão, em alguma medida, branda acerca dos retornados e do drama dos anos finais da colonização e do processo migratório para Portugal. A autora pareceria prever a reação de parte dos leitores, tendo em vista que Caderno de memórias coloniais traz a ideia de traição como um elemento estruturante do próprio ato da escrita. Contar aquela história, ou uma outra versão da história, ou ainda uma verdade diferente daquela transmitida pelos seus pais, era uma traição. A dimensão autobiográfica da narrativa, centrada na infância da menina branca em Lourenço Marques, explorando a dualidade da figura paterna – pai amoroso e colonizador impiedoso – foi elemento crucial para a recepção da obra. Afinal, como poderia uma filha dedicar um livro à memória do pai e ainda descrevê-lo daquela forma? No entanto, o processo de rememoração e enfrentamento do passado significava também confrontar a imagem do pai, como homem e como agente da colonização.

A narrativa atravessa a última década da Guerra Colonial/Guerra pela Independência em Moçambique e a viagem da narradora para Portugal, considerada retornada, apesar do seu sentimento de desterro. Esta perspectiva também configura uma abordagem que encara outra dualidade: a do sentimento de pertença. Afinal, nascera em Moçambique, nunca havia estado em Portugal, viaja sozinha, já que os pais não retornam no primeiro momento. Quais sentimentos deveria ter sobre a nova terra, tratada pelos outros como lugar já conhecido por ela? Com a proximidade da viagem, é evidente que a preocupação dos pais é ensiná-la a verdade a ser contada quando chegasse em Portugal. Embora aprendesse, em casa e na escola, sobre o país e sobre o que significava ser portuguesa, a questão agora seria qual verdade contar sobre África e sobre qual o papel que os pais (e os portugueses) desempenhavam no território. A narradora não assume a função de portadora da mensagem dos pais, por isso sente seu corpo em guerra: “O meu corpo foi uma guerra, era uma guerra, comprou todas as guerras” (2011, p. 127); e a sua escrita como traição: “E toda a minha verdade é para eles uma traição” (2011, p. 131).

Se houve uma porção de escândalo, também houve um significativo sucesso, que levou a obra a ser traduzida, para o alemão (2019) e para o francês (2021), por exemplo, a receber o Prix des Lecteurs du festival de Littérature européenne de Cognac, em 2022. O livro foi também publicado no Brasil, onde a escritora participou da Feira Literária Internacional de Paraty em 2018 e se tornou objeto de inúmeros trabalhos acadêmicos. Em 2015, Caderno de memórias coloniais ganhou uma nova edição, revista e aumentada.

Transpondo a dimensão autobiográfica evidente em Caderno de memórias coloniais, Figueiredo publica em 2016 o romance A gorda. Vencedor do Prêmio Literário Urbano Tavares Rodrigues, foi também traduzido para o alemão (2021) e para o francês (2023), e publicado no Brasil em 2018. O livro, em muitos aspectos, dialoga com a obra anterior. Apesar de a narrativa de A gorda ser desenvolvida a partir da cirurgia bariátrica da personagem Maria Luísa, o fato de a narradora-personagem ser também uma retornada, além da relação estabelecida com os pais, mantém o universo literário da autora no âmbito das questões diaspóricas que envolvem o fim da colonização portuguesa na África.

Se Caderno tinha sido dedicado ao pai, A gorda é dedicado à mãe. A relação entre Maria Luísa e a mãe é conturbada em muitos aspectos, há novamente uma admiração pela figura paterna que, tempos depois do regresso de Moçambique, adoece e morre, deixando a esposa e a filha a dividir um apartamento cheio de memórias daquela outra terra. Dos embates geracionais, atravessados também pelas divergentes perspectivas sobre o Império já evidentes em Caderno de memórias coloniais, dos julgamentos maternos sobre o corpo da filha, das dificuldades de convivência, sobressai o reconhecimento de Maria Luísa de que era a mãe a verdadeira força da família.

Dentre as dificuldades da relação familiar é evidente que os diferentes momentos de “retorno” criaram um distanciamento entre os pais e a filha. Maria Luísa, assim como a narradora do Caderno, é enviada para Portugal após a independência de Moçambique, onde seus pais ainda permanecem. Dessa forma, é possível perceber as dificuldades da adolescente que chega a um Portugal desconhecido, onde é tratada como retornada e, consequentemente, aproximada daqueles que teriam uma origem comum à sua, como é o caso da colega de escola Tony, vinda de Angola pouco tempo depois, também sem os pais que por lá ficaram. Ambas comungam o sentimento de desterro, apesar de diferenças significativas. Com o retorno dos pais, o espaço da casa é preenchido pelas memórias da outra terra, um mobiliário que para Maria Luísa possui um ar tropical, completamente destoante de Portugal e da realidade atual da família.

Em Caderno de memórias coloniais a questão dos retornados só aparecerá mais ao final do livro, uma vez que acompanhamos as memórias da narradora desde a infância até o momento da preparação da viagem e a sua chegada a Portugal. Já em A gorda, que começa a partir da vida adulta e da cirurgia bariátrica de Maria Luísa e apresenta recuos ao início da sua adolescência, vemos a condição de retornada de forma mais explícita, sobretudo na experiência escolar. No entanto, entre alguns elementos comuns nas duas narrativas, há um espaço nas residências portuguesas que chama a atenção: a existência de um sótão onde são guardados os resquícios da vida em Moçambique. O sótão é o espaço ao qual a narradora do Caderno recorre para escrever e onde Maria Luísa encontra recordações de um tempo findo.

Após a publicação dos dois romances, a ausência no mercado editorial criou a expectativa acerca do caminho a ser seguido pela escritora em um próximo livro. Permaneceria trabalhando uma perspectiva autobiográfica/autoficcional voltada para o contexto em torno da Revolução dos Cravos e da descolonização da África?

Em 2022, após sete anos de hiato, Isabela Figueiredo publicou Um cão no meio do caminho. Embora, de forma muito evidente, o romance se afaste dos temas tratados nas obras anteriores, especialmente dado o significativo distanciamento de aspectos autobiográficos/autoficcionais, alguns elementos da sociedade portuguesa pós-25 de abril têm o seu lugar. As histórias de solidão de dois vizinhos, José Viriato e Beatriz, cruzam-se em 2018 e a perspectiva em primeira pessoa, conduzida pela voz do primeiro, é responsável por dar a conhecer sobretudo a sua própria história, mas também a do encontro entre os dois. José Viriato vive com seus dois cães, Revolução e Nossa Senhora, e trabalha garimpando lixo e vendendo os objetos recolhidos na Feira da Ladra. Beatriz vive só, cercada por um incontável número de caixas que guardam todos os tipos de coisas, pequenas heranças da mãe, fotografias que fez ao longo da vida, retalhos de tecidos etc.

Grande parte do livro é formada pelas retrospectivas da infância de José Viriato, que mostram um Portugal logo após a Revolução dos Cravos, mas sem grandes enfoques em episódios históricos. No entanto, o recorte temporal pós-74 traz inevitavelmente a imagem dos retornados, que atravessa a vizinhança e a escola do então garoto com 11/12 anos. Tratados exclusivamente como grupo, os retornados não possuem qualquer individualidade ou subjetividade no romance, são sobretudo as crianças da escola de José Viriato, que tiram notas ruins e têm péssimo comportamento, descritos como agressivos, mas de quem o menino se aproxima na tentativa de resgatar um cão machucado. O ódio aos retornados surge nas considerações de José Viriato, sobretudo a partir das palavras do seu pai, revisor de textos em um jornal, membro do PCP, personagem responsável pelas referências mais políticas do romance, que considerava os retornados uns fascistas que exploraram os africanos.

No entanto, para além da referência direta aos retornados e à forma como a sociedade portuguesa enxergava neles a origem dos males contemporâneos, Um cão no meio do caminho também aborda as fragmentações familiares resultantes da migração de portugueses para outros espaços. O pai de Beatriz abandonou a família e migrou para a França, voltando somente para assinar o divórcio; o pai de José Viriato, após a separação e a morte da ex-esposa, deixa o filho com a avó materna e vai para Angola, onde morre pouco depois; já a filha de Florinda, vizinha da avó de José Viriato, havia migrado para a Suíça, deixando a filha Cátia aos cuidados também da avó. Histórias de tentativas de mudança de vida, todas com o peso de deixar alguém, marcadas por abandonos e, sobretudo, que resultam em uma lacuna geracional em Portugal, filhos que cresceram longe dos pais, criados pelos avós.

Com a publicação deste último livro, a escrita de Isabela Figueiredo não se afasta do recorte temporal pós-25 de abril que marcou as obras anteriores. No entanto, ao distanciar-se de memórias específicas que envolviam o movimento Moçambique-Portugal e evidenciavam dinâmicas familiares extremamente afetadas pelo contexto do “retorno”, Isabela Figueiredo destaca a solidão de uma sociedade ainda bastante fechada. A desestruturação familiar consequência, dentre vários motivos, também pela migração, permanece como um tema e, se não podemos olhar Portugal e a literatura portuguesa contemporânea apenas pelo recorte da Revolução dos Cravos e do contexto mais amplo que o envolve, tampouco é possível ignorar os vários segmentos da sociedade portuguesa afetados por essa história recente.

 

Citações

Quando o avião tomou altura houve dentro da cabina um silêncio fundo sobre a baía de Lourenço Marques, os subúrbios, as palhotas, as terras de cultivo, o mato que vi enquanto subíamos.
Em silêncio, mas num silêncio ainda mais fundo, porque afinal já era uma mulher, voltei a chorar o que perdia e haveria de pagar. A dívida alheia que me caberia.
Nunca entreguei a mensagem de que fui portadora. (Caderno de memórias coloniais: 105-111)

Maputo/Lisboa, voo TAP, via Senegal.
Lembro a data em que desembarquei sozinha no aeroporto de Lisboa, pelas seis da manhã de um dia no final de novembro de 1975. Estava muito frio, e eu gelava. Mas esse não foi o dia mais frio do inverno de 75; se bem me recordo, essa estação foi especialmente rigorosa.
Passada a alfândega, bem agasalhada no meu casado de lã verde-alface, que pertencera à minha tia nos anos 50, e fora à pressa adaptado ao meu corpo, desci uma passadeira longa e curva que me levaria até pessoas que desconhecia, mas que me esperavam – a família dos meus pais.
[…]
Em Portugal, habitei-me cedo a ser alvo de troça ou de ridículo, por ser retornada ou por me vestir de vermelho ou lilás. […] (idem: 119)

Quando regressaram, os papás não conceberam a ideia de voltar às terras onde tinham nascido, porque haviam conhecido demasiado mundo para conseguir estabelecer-se na província. Isto nunca se disse, mas estava implícito. Tinham-me mandado para Portugal em 1975, imediatamente após a independência, e, como eu fora acabar a minha solitária excursão na Cova da Piedade, em casa da tia Maria da Luz, não foram mais longe. A Outra Banda era o braço direito da capital, descontraída e multicultural como a Lourenço Marques dos remediados, donde vieram. Por isso compraram aqui a casa onde acabaram os seus dias, e na qual vivo. Foi o Destino, ao qual ninguém foge, nem os próprios deuses. (A gorda: 25)

A selva da mamã transcendia a minha escassa tolerância estética. Considerava-a uma pessoa de prolixo mau gosto, antiquada e assaloia. Tinha vergonha do tropicalismo e desdenhava a casa, destilando a minha raiva em sugestões desagradáveis sobre o seu aspeto, com secura e amargor. Não se podia negar que eu tinha nascido em Moçambique, que estava impregnada desses coloridos ares do sul, mas todos os meus amigos eram portugueses, e entre nós não se falava de África, que tinha ficado para trás. Odiava os papás acabados de chegar de Moçambique. […] Parecia-me tudo gente congelada no tempo e na ideologia, incapaz de se adaptar, esquecer, permanecer e avançar. (A gorda: 60)

Os retornados da minha turma vinham mais atrás, no carreiro, na algazarra do costume. Evitava-os. Andavam em grupo e só arranjavam sarilhos. Achavam-se melhores do que toda a gente. Chamavam-nos saloios. Diziam que já tinham isto tudo e que até sabiam matar. […] Se alguma coisa desaparecia, se uma lâmpada aparecia partida tinham sido os sacanas dos retornados. Os adultos diziam que eles andavam de barriga cheia e não tinham respeito por nada. Tinham vindo para Portugal roubar trabalho e oportunidades. O Estado dava-lhes alojamento e subsídios a que nós não tínhamos direito. Tudo para quem já vinha do bem-bom das Áfricas. O meu pai não gostava deles. (A gorda: 121)

A minha opinião sobre os retornados era fácil de explicar: eram portugueses que tinham vindo para Portugal, mas que na verdade eram africanos. Falavam um belo português pejado de palavras que tinham trazido de África, e comiam a mesma comida, mas não eram como nós. Tinham camisas feitas com tecidos em fantasia, étnicos, gostavam de comida picante e passavam a vida a falar de uma bebida que se chamava coca-cola. Detestavam Portugal e os portugueses, dos quais diziam mal a torto e a direito. Os portugueses eram fracos, cobardes e encolhidos. Eles eram decididos, confiantes e orgulhosos, apesar das dificuldades temporárias em que se encontravam. (A gorda: 158)

 

Bibliografia Ativa Selecionada

Figueiredo, Isabela (2011), Caderno de memórias coloniais. Coimbra, Angelus Novus.

— (2015), Caderno de memórias coloniais (edição revista e aumentada). Alfragide, Editorial Caminho.

— (2016), A gorda. Alfragide, Editorial Caminho.

— (2022), Um cão no meio do caminho. Alfragide, Editorial Caminho.

 

Bibliografia Crítica Selecionada

Amaral, Ana Luísa (2017). “A Gorda”. Revista Colóquio/Letras. Recensões Críticas, no. 196: 241-244.

Franco, Roberta Guimarães (2021), “Do corpo-escrita ao corpo-casa: o Quarto-Império e o Sótão-Memória em Isabela Figueiredo”, in Roberta Guimarães Franco e Angelo Adriano Faria de Assis (org.), Narrativas em tempos de crise. Viçosa, UFV, Divisão Gráfica Universitária: 162-175.

Franco, Roberta Guimarães (2018), “Portugalidade e pós-memória: configurações e desconstrução da identidade portuguesa no século XXI”, in Laura Barbosa Campos, Silvina Carrizo e Pedro Armando Magalhães (org.), (Pós-)Memória e transmissão na literatura contemporânea. Rio de Janeiro: ABRALIC: 153-166.

Chiziane, Paulina (2015), “Sobre Caderno de memórias coloniais”, in Isabela Figueiredo, Caderno de memórias coloniais (edição revista e aumentada). Alfragide, Editorial Caminho.

Gil, José (2015). “Sobre Caderno de memórias coloniais” in Isabela Figueiredo, Caderno de memórias coloniais (edição revista e aumentada). Alfragide, Editorial Caminho.

Jorge, Sílvio Renato (2015). “As fotografias de um caderno: passeio pelas memórias coloniais de Isabela Figueiredo”. Metamorfoses – Revista de Estudos Literários Luso-Afro-Brasileiros. Rio de Janeiro, Vol. 13, n. 2: 54-64.

Ribeiro, Margarida Calafate (2004), Uma história de regressos – Império, Guerra Colonial, Pós-colonialismo. Porto: Afrontamento.

Autor(a): Roberta Guimarães Franco | Lattes


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Roberta Guimarães Franco, "Isabela Figueiredo", Diásporas em Português, ISBN 978-989-35462-0-8, 7 de Abril, 2025, https://diasporasemportugues.ilcml.com/glossary/isabela-figueiredo/

Verbetes de Roberta Guimarães Franco: Isabela Figueiredo,