(1962- )

Luciana Fina é italiana (nasceu em Bari), mas vive e trabalha em Lisboa desde 1991. Após a formação em Literaturas Românicas, foi programadora independente na Cinemateca a partir de 1993 e durante duas décadas. Fina é uma documentarista e vídeo-artista que cruza a arte cinematográfica com as artes visuais, encontrando na migração o fulcro do sua labor. Foi professora convidada na Ar.co, onde lecionou História(s) do Cinema e atualmente é investigadora de doutoramento na área das Artes da Imagem em Movimento, no Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes (CIEBA) da Faculdade de Belas-Artes, Universidade de Lisboa.
Desde o seu primeiro documentário A audiência (1998), a realizadora enfocou a sua atenção, nas temáticas da margem para lembrar uma expressão de Strippoli (2023). A primeira santificação de um cigano no Vaticano é, de facto, o pretexto para filmar uma família cigana em Castelo Branco expondo, assim, uma dupla margem, geográfica e cultural.
A primeira experiência de instalação para o palco é de 1993 com um trabalho em Super 8 denominado Branco sujo e coreografado por João Fiadeiro, mas é só entre 2002 e 2004 com CCM na Fundação Gulbenkian e o tríptico CHANTportraits no Museu do Chiado que Lucina Fina inicia um percurso paralelo em exposições.
A ideia central desenvolvida ao longo dos anos na obra de Fina é a de fazer retratos filmados, no cinema, nas artes visuais e nas instalações de vídeo, onde quem filma, a cineasta, consegue conectar-se diretamente com a pessoa filmada, retratada, a partir do rosto e das suas linhas e através do trabalho e dos movimentos da câmara. CCM (sigla de Centro Comercial da Mouraria) e Chant portrait – Retrato cantado são centrados, respetivamente, nos temas das migrações e do retrato.
A instalação CCM, em colaboração com Moritz Elbert, foi apresentada na Fundação Gulbenkian como uma obra de mixed media que combinava 4 DVDs e uma série de fotografias em formato de postais, organizadas em composição mural. Aqui as numerosas comunidades que habitam a cidade de Lisboa foram capturadas, em plena atividade laboral, comercializando produtos vindos da África, da Ásia e da América Latina. Ainda, em 2010, na variação com o nome CCM posto 7 – A máquina do medo, através das imagens em movimento das câmaras de videovigilância, a artista integrou frames provenientes do mercado onde “todos os outros” de Lisboa vivem o seu dia a dia, enquanto os visitantes da exposição povoavam o outro ecrã, numa dualidade construtora de significados.
Quanto ao tríptico de 2004, CHANTportraits,tratou-se de uma instalação de vídeo em três canais na qual Fina retratou filmicamente três artistas portuguesas de diferentes gerações. Em três planos sequencias de 60 minutos, Carla Bolito (atriz de teatro), Vera Mantero (bailarina) e Isabel Ruth (atriz de cinema) cantam três distintas canções sobre o tempo. A instalação transformou-se em uma experiência sobre o retrato onde se captura o olhar e a perceção do tempo dessas três mulheres.
Em 2016, constrói o díptico Terceiro andar, composto por um documentário de 62 minutos e uma vídeo-instalação de 27 minutos onde os rostos, os espaços e as culturas se cruzam numa ideia de movimento que atravessa um prédio, várias histórias de vidas e uma subtil linha de ligação entre a Europa, Portugal e a África (Guiné Bissau). É nesta obra de mistura, entre cinema e vídeo-instalação que a artista une a metodologia do retrato, já utilizada em CHANT Portraits com as temáticas da multiculturalidade e da migração, que também atravessam CCM, desta vez mostrando os rostos de duas mulheres muçulmanas, mãe e filha, em detalhe, acentuando com naturalidade os pormenores sociais e culturais, como maquilhagem, brincos, turbantes e vestuário colorido. Este díptico faz fluir no interior de um prédio no centro de Lisboa, no Bairro das Colónias, não só os diálogos entre mãe e filha, mas também os ruídos de fundo, as mudanças de luz das escadas do condomínio, pondo em evidência alguns conceitos como comunidades diaspóricas em cruzamento, mas também materialidades da diáspora em português. Neste contexto, é importante o movimento vertical bidirecional, de cima para baixo e vice-versa, por colocar em primeiro plano as raízes não comuns. Estas experiências marginalizadas revelam uma forte dimensão reflexiva sobre a sociedade lisboeta em contínua mudança e em contínuo movimento, e sobretudo também uma dimensão autobiográfica porque estas margens também desvelam a própria experiência de Fina como italiana transplantada em Portugal.
A perceção do espaço do prédio é mediada por uma pluralidade de línguas e dialetos, como o fula da Guiné-Bissau e o português, que coexistem e resistem à multitude de significados no linguajar quotidiano de Lisboa. Essa convivência linguística não implica uma incursão no mundo do outro, mas sim a criação de um espaço de interação. O cinema surge, então, como um meio que estabelece esse espaço de diálogo entre mim e o outro, evitando qualquer invasão. O prédio e as suas escadas tornam-se uma metáfora desse espaço de interseção, onde os sons — como o ruído de um pilão e as transmissões de rádio — simbolizam a comunicação entre realidades distintas. Aqui, a educação sentimental e a transmissão de conhecimento acontecem por meio da tradução, não apenas das palavras, mas das vivências e experiências. A experiência de viver entre várias línguas e formas de expressão reflete-se na própria arquitetura sonora e cultural da cidade, representada pela riqueza dos sons e dos gestos quotidianos que se entrelaçam com a questão, central no filme, Em qual língua é que vamos contar as histórias que nos foram contadas?
Migrante que migra através das palavras e através das imagens, esta artista acompanha Portugal, tocando territórios imaginários através de corpos que materializam o ideal da independência, da luta pela liberdade e sobretudo da luta pela sobrevivência. Fina consegue retratar múltiplos movimentos: a diáspora, neste sentido, é o movimento de migrantes, mas também o permanecer e o mudar das línguas e dos dialetos.
Indistintamente, nos seus trabalhos de arte e de cinema, Fina elabora constantemente uma construção visual de fora para dentro, com a inclusão da migração, da diáspora e da geografia política como eventos externos que moldam as existências e que podem ser capturados pela câmara através da metodologia fílmica do gesto de “filmar rostos” com a técnica do close-up.
Também são notáveis os trabalhos sobre os arquivos dos media. Estes trabalhos destacam-se pela forma como exploram e reinterpretam imagens históricas, tanto em Itália quanto em Portugal. Em 2021, apresentou a instalação Andromeda para mergulhar no universo da televisão italiana dos anos 1960 e 1970, investigando não apenas o conteúdo dessas emissões, mas também o impacto cultural e social que essas imagens tiveram sobre o público e a sociedade da época. Através de uma abordagem crítica e visualmente envolvente, Andromeda propõe uma reflexão sobre a memória coletiva e o papel dos media na formação das identidades culturais italianas. Já em 2024, com o documentário Sempre exibido no Festival de Veneza, seção Giornate degli autori, Fina volta-se para o contexto português, explorando as imagens do país logo após a Revolução dos Cravos de 1974. O filme oferece uma reflexão profunda sobre a transição de Portugal para a democracia, utilizando arquivos audiovisuais da época para recontar a história da nação através de imagens carregadas de simbolismo.
Ao traçar este percurso através da análise de algumas das obras de Luciana Fina, sublinha-se uma coerência estrutural que sempre inclui a íntima experiência da realizadora como ponto de partida para um olhar expandido que não pode ficar expressado só numa tipologia concreta de arte (o vídeo-ensaio, o documentário e a vídeo instalação). A sua obra frequentemente dialoga com temas de deslocamento e pertença, refletindo sobre a diáspora e os fluxos migratórios que moldam identidades individuais e coletivas.
Desde os primeiros anos de atividade, a obra artística de Luciana Fina tem vindo a ser considerada a nível internacional como olhar propulsor de uma ligação estreita entre o cinema e as outras artes. Através do seu olhar cinematográfico, a artista interroga as fronteiras entre culturas e geografias, dando visibilidade a histórias de migração, encontros interculturais e transformações identitárias que emergem desses deslocamentos. A sua abordagem estética e narrativa não apenas capta a poética da mobilidade humana, mas também enfatiza a riqueza dos encontros entre diferentes tradições e modos de vida.
Citações
Com este filme queria mesmo negar narrativas que pudessem exotizar estas minhas vizinhas, amigas e mulheres com que tocava este diálogo. Depurei o filme de tudo aquilo que pudesse ser narrativo nesse sentido de descrever a vida. Achei muito mais importante imaginar o cheiro das vacas e esta miúda todo o tempo a tentar afastar as moscas enquanto decide autodeterminar-se e dizer “Avó, nada disso me fascina para o meu futuro. Quero outra vida e vou imagina-la noutro lugar”. (2017; 12m 00s.)
Decidi que elas (as raízes) poderiam ser um elemento orgânico biologicamente forte para atravessar este prédio com os sons, as palavras e as traduções; que esse elemento orgânico também podia atirar pelo prédio algo de importante que, se calhar, significa “eu sou migrante também”, embora não sejam chamados assim os cineastas europeus que mexem pela Europa, mas eu também tento enraizar-me aqui e estou a enraizar-me aqui há muito tempo tal como elas. Digamos que eram raízes aéreas, mas raízes que dizem respeito às nossas vidas, todas nossas. (2017; 13m 14s. )
Há um fluxo no filme que fala sobre línguas e linguagens. Para mim, é uma operação que talvez proponha algo contra a deriva da linguagem, ou seja, a atenção que damos à coexistência de diferentes línguas e linguagens na nossa vida quotidiana. Numa cidade como Lisboa, isso acontece num edifício. Num apartamento, como o terceiro andar do meu prédio, acontece que uma mãe de origem da Guiné-Bissau tenha um dialeto que é a única língua que usa porque está sempre em casa, enquanto a filha já fala português. Existe essa língua de mediação com o mundo exterior e também comigo. (2016; 5m 18s.) Tradução da autora
[C’è un flusso nel film che parla di lingue e linguaggi. É per me un’operazione che forse propone qualcosa contro la deriva del linguaggio che è l’attenzione che abbiamo alla coesistenza di lingue e linguaggi diversi nella vita del nostro quotidiano. In una città come Lisbona succede in un palazzo. In un appartamento come il terzo piano del mio palazzo succede che una madre di origine della Guiné Bissau abbia un dialetto che è l’unica lingua che usa perché è sempre in casa e la figlia già parla portoghese. C’è questa lingua di mediazione con il mondo esterno e anche con me.]
Bibliowebgrafia Ativa Selecionada
Filmografia
2024 Sempre
2020 Questo è il piano
2016 Terceiro Andar
2013 In Medias Res
2009/2012 Portraire
2006 Le Réseau
2004 O Encontro
2003 Taraf, três contos e uma balada
2001 24h e Outra Terra
1999 Jérôme Bel, le film
1998 A Audiência
Instalações
2021 Andrómeda (díptico, mixed media)
2019 A estrada (site specific)
2016 Terceiro Andar (díptico)
2014 Être Ici (site specific)
2014 A Casa e o Tempo (site specific)
2001/2010 CCM (CCTV posto 1 /7)
2009 HORS SUJET portrait (díptico)
2009 VUE portraits (tríptico)
2005 REFLECTION portrait (díptico)
2004 MOUVEMENT portrait (díptico)
2003 CHANT portraits (tríptico)
Bibliografia Crítica Selecionada
2016 https://www.youtube.com/watch?v=F0ZeGQ0VnOU
2017 https://www.youtube.com/watch?v=gjbjQ88Ac08
Santos, D. (2021). Diálogos entre Italo Calvino e Luciana Fina. Contemporânea, nº 7, (edição: Eduarda Neves), Lisboa, Making Art Happen
Strippoli, G. (2023). Deshacer el margen. La obra de Luciana Fina a traves del analisi de Portraire – Notas a margem de um retrato. Em Ramé, Cucinotta (coord.) Cine: feminino del plural. Mujeres y práticas creativas en el ambito ibérico. Editorial Sinderesis. 187 – 202
Autor(a): Caterina Cucinotta | ORCID