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Francisco José Tenreiro

Passagens:

(1921-1963)

Poeta, ensaísta e geógrafo, Francisco José Tenreiro nasceu na ilha de São Tomé, e faleceu com apenas 42 anos, em Lisboa. Filho de um português, administrador de uma roça, e de uma são-tomense contratada, foi enviado para Portugal aos cuidados de uma tia paterna quando tinha apenas dois anos. Cresceu, estudou, formou-se académica e intelectualmente e constituiu família em Portugal. Foi aluno de Orlando Ribeiro, que o incentivou a preparar a tese de doutoramento sobre São Tomé, daí resultando o livro A Ilha de S. Tomé (1961) que continua a ser um trabalho incontornável para quem estuda o arquipélago. Na qualidade de funcionário do Ministério do Ultramar, participou num curso em Cambridge, no verão de 1950, e com uma bolsa do British Council, entre 1954 e 1955, estudou na London School of Economics and Political Sciences. Em 1955, passou a ensinar na Universidade de Lisboa, regendo as cadeiras de Etnologia, Geografia Política e Económica, e Geografia Colonial. Entre 1956 e 1958, Tenreiro fez várias viagens a São Tomé no âmbito da sua pesquisa para o doutoramento e, nessa altura, escreveu também os seus poemas mais nostálgicos e evocadores do universo são-tomense.

Tenreiro é um intelectual cuja produção literária e ensaística deve ser referência obrigatória em qualquer abordagem do século XX africano do mundo da língua portuguesa. Apesar da sua formação europeia e portuguesa, a sua obra nunca se desvinculou do mundo negro, de África, e de São Tomé e Príncipe em particular. O mundo negro africano ocupa um lugar central na sua consciência intelectual e, pode até dizer-se, na sua posição ideológica. Isso não significa que se possa incluir a escrita de Tenreiro dentro de uma visão nacionalista estrito senso como o de outros seus contemporâneos, mas é inegável a consciência que tem sobre a condição do homem negro. Ao analisar o percurso poético de Tenreiro, vários críticos destacam o facto de o poeta ser mestiço biológica e culturalmente, e usam expressões como “alienação”, “poética de ambiguidades” (Margarido 1980: 528 e 534) e “ser desenraizado” (Secco 2010: 203) mas essa leitura talvez não seja muito produtiva. Ainda que Tenreiro não tenha publicamente, de forma explícita e inequívoca, associado a negritude e a luta anticolonial à condenação do colonialismo português e que essa falta de afirmação política se relacione com as suas circunstâncias pessoais de ser um mestiço santomense educado na Europa, isso pouco diz sobre a sua consciência da condição colonial. Tenreiro pode ter crescido em Portugal, porém, essa ausência de experiência vivida em África não se traduziu em desinteresse pela história do continente, pelo contrário, a ela dedicou não só grande parte do seu trabalho académico e ensaístico, mas também, direta ou indiretamente, toda a sua poesia. Ao lermos os seus poemas não temos dúvidas sobre o posicionamento político do sujeito poético. Digamos que a ação anticolonial em Tenreiro se constrói a partir de uma dimensão cultural e menos combativa. E, neste contexto, a questão da diáspora impõe-se como um tema transversal a toda a sua obra.

A leitura dos estudos reunidos por Inocência Mata em Francisco José Tenreiro – As Múltiplas Faces de um Intelectual (2010) indica-nos que a produção poética de Tenreiro pode ser dividida, de um modo geral, em dois grupos. Por um lado, temos os poemas de Ilha de Nome Santo (1942), livro considerado um marco da moderna literatura são-tomense e onde se observa o cruzamento entre as temáticas do neorrealismo e a ideia de mestiçagem; por outro lado, temos os poemas em que sobressai quer a influência dos poetas afro-americanos, cubanos e brasileiros, quer a influência da negritude francófona. Dada a amplitude de diálogos que estabelece e ao convocar os conceitos de diáspora e diversidade cultural, a poesia de Tenreiro pode ser considerada precursora da mundivisão anticolonial inscrita na obra de vários criadores afrodescendentes/afro-portugueses, ainda que num contexto muito diferente (é bom não esquecer que Tenreiro viveu durante o regime do Estado Novo onde o dissenso era castigado). A celebração da negritude na poesia de Tenreiro é, acima de tudo, humanista, ultrapassando a dimensão geográfica e temporal. Outro aspeto muito interessante e que demonstra o potencial de diálogo com outros espaços e vozes é o facto de Tenreiro ter sido um conhecedor profundo da literatura negra norte-americana, sobre a qual publicou vários ensaios. A título ilustrativo, destaca-se “Literatura negra norte-americana” (Seara Nova, 1944) e “Acerca do diálogo entre a Europa e a África Negra – Dados para a sua compreensão (Estudos, 1959). Com efeito, a dimensão transnacional surge tanto na poesia quanto nos ensaios, e isso claramente pressupõe a afirmação de pertencimentos múltiplos. De acordo com Inocência Mata, Tenreiro foi “um intelectual cuja obra poética e ensaística é referência obrigatória (…) a história pessoal (…) feita de liminaridades identitárias (culturais, geográficas e étnicas), não podia fazer dele um sujeito monocultural” (2010: 306-9).

Excetuando os poemas que abordam as realidades de São Tomé e Príncipe e que veiculam uma ambígua celebração da mestiçagem, a voz poética tenreiriana filia-se numa irmandade que vai para além das fronteiras do continente africano, cartografando sentimentos de pertença desterritorializados, promotores de uma visão humanista oposta ao racismo, à exploração dos oprimidos e à escassez material que conduz à pobreza extrema. Para Alfredo Margarido, a poesia de Tenreiro assenta numa comunidade de sentimentos: “Comunidade esta que não é já sentida com o europeu colonizador, mas acima de tudo com as sociedades africanas colonizadas, com os negros recusados e vilipendiados pelas sociedades ocidentais” (1980: 128). Nos poemas “Negro de todo o mundo”, “Epopeia” e “Fragmentos de blues” enuncia-se a errância humana por vários espaços artísticos e culturais que se interconectam: a Europa, a África e as Américas. Assumindo uma voz coletiva, o poeta solidariza-se com todos os negros oprimidos física e/ou mentalmente no presente ou no passado, exaltando personalidade políticas e artísticas negras, como Toussaint-Louverture, Martin Luther King, Louis Armstrong, Langston Hughes, Nicolas Guillén, Aimé Césaire e Léopold Senghor, entre outras. Nestes poemas, a diáspora surge quer como lugar de dispersão, derrota e sofrimento, quer como potencialidade criativa.

O mapeamento e reconhecimento da diáspora africana no Atlântico com o objetivo de denunciar os séculos de escravatura e os regimes de segregação e separação racial promotores da desumanização dos corpos negros fica bem patente em “Coração em África”, poema incluído na primeira antologia do movimento da negritude em língua portuguesa, Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa, publicada em 1953, em parceria com Mário Pinto de Andrade, pela Casa dos Estudantes do Império. Observa-se, neste longo poema narrativo, o deslocamento do nacional e do continental para o global, a história, as tradições orais, a musicalidade do continente africano, as histórias da diáspora negra na América, os elementos da arte europeia, as estéticas do neorrealismo e da negritude, dando corpo a um produto literário imbuído de um ímpeto de transformação. Não é por acaso que o poema finda com o sujeito poético interpelando diretamente o seu “coração louco” para lhe pedir que se mantenha esperançoso – a repetição das expressões “na esperança de” e “deixa-me acreditar” atestam esse profundo desejo de mudança. Desta forma, a dispersão de elementos históricos, geográficos e culturais no enunciado poético acaba por ser um elemento positivo contra as mais diversas injustiças e opressões. O sujeito poético coloca o seu desejo de justiça social no futuro e perfila-se ao lado de tantos outros artistas das mais variadas proveniências geográficas e estéticas que configuram e defendem os mesmos valores humanistas, opondo-se à intolerância e à exclusão dos negros: desde os poetas Guillén, Hughes, Diop, Senghor, Neruda, Namorado, aos pintores Rivera, Picasso, Portinari, Pomar, e aos músicos como Armstrong. A deambulação pela Europa performatizada no poema materializa-se numa vivência marcada pelas “saudades longas” da beleza e do calor das paisagens africanas, sendo que é através da melancolia produzida por essas ausências que o eu lírico apreende o mundo à sua volta. A dissensão entre corpo e coração permite ao poeta não só identificar as mazelas socioeconómicas existentes na Europa e no resto do mundo (consequência de uma ideia de progresso que escraviza pela força do trabalho, deformando os corpos), mas permite também ser sensível às lutas quotidianas de quem faz tudo para superar “as melancolias do orçamento que não equilibra” e, ainda, solidarizar-se com o sofrimento de quem, do outro lado do Atlântico, é vítima da intolerância racial. Verso a verso, a voz do poeta vai construindo um mural, onde se homenageia um afro-americano morto injustamente na cadeira elétrica, se denunciam as deformações, as misérias e as carências económicas de todos os explorados e marginalizados, e onde igualmente se deixa impresso o racismo vivido em primeira mão e perante o qual o poeta reage com ironia.

Por conseguinte, em “Coração em África”, descentraliza-se a ótica colonial que observa África a partir da Europa, na medida em que o sujeito poético negro está na e pensa a Europa com e a partir de um deslocamento imposto pela sua filiação emocional e espiritual a África, e essa circunstância permite-lhe recortar a paisagem europeia e nela encaixar cenas de outros espaços como numa colagem, resultando daí a aproximação horizontal entre todos esses lugares nomeados – em todos há miséria, guerra e exclusão. Por outras palavras, a descentralização do ponto de vista revela-se no facto de os “caminhos” europeus “trilhados” pelo poeta incluírem múltiplos espaços da diáspora negra nas Américas. Assim, ainda que o eu lírico se encontre fisicamente na Europa e, por momentos, esse espaço se constitua como o centro de onde ele fala, esse centro está completamente estilhaçado, não só porque contém dentro de si vários cenários de escassez económica e de violência, mas também porque a Europa é apenas mais um dos vários espaços geoculturais que compõem a cenografia do poema. Em suma, parece evidente que a este poema subjazem a valorização da africanidade e as preocupações da negritude invocadas pela justaposição das vozes de artistas africanos e afrodescendentes, todavia, o olhar do poeta está fortemente empenhado em ampliar e desenhar uma solidariedade diaspórica à escala universal.

 

Citações

“Coração em África” (1953)

Caminhos trilhados na Europa
de coração em África.
Saudades longas de palmeiras vermelhas verdes amarelas
tons fortes da paleta cubista
que o Sol sensual pintou na paisagem;
saudade sentida de coração em África
ao atravessar estes campos do trigo sem bocas
das ruas sem alegria com casas cariadas
pela metralha míope da Europa e da América
da Europa trilhada por mim Negro de coração em África.
De coração em África na simples leitura dominical
dos periódicos cantando na voz ainda escaldante de tinta
e com as dedadas de miséria dos ardinas das cities boulevards e baixas da Europa
trilhada por mim Negro e por ti ardina
cantando dizia eu em sua voz de letras as melancolias do orçamento que não equilibra
do Benfica venceu o Sporting ou não
ou antes ou talvez seja que desta vez vai haver guerra
para que nasçam flores roxas de paz
com fitas de veludo e caixões de pinho;
oh as longas páginas do jornal do mundo
são folhas enegrecidas de macabro blue
com mourarias de facas e guernicas de toureiros.
Em três linhas (sentidas saudades de África) –
Mac Gee42 cidadão da América e da democracia
Mac Gee cidadão Negro e da negritude
Mac Gee cidadão Negro da América e do Mundo Negro
Mac Gee fulminado pelo coração endurecido feito cadeira eléctrica
(do cadáver queimado de Mac Gee do seu coração em África e sempre vivo
floriram flores vermelhas flores vermelhas flores vermelhas
e também azuis e também verdes e também amarelas
na gama polícroma da verdade do Negro
da inocência de Mac Gee);
três linhas no jornal como um falso cartão de pêsames.
Caminhos trilhados na Europa
de coração em África.
De coração em África com o grito seiva bruta dos poemas de Guillén
de coração em África com a impetuosidade viril de I too am América
de coração em África com as árvores renascidas em todas as estações nos belos poemas de Diop
de coração em Africa nos rios antigos que o Negro conheceu e no mistério do Chaka-Senghor
de coração em Africa contigo amigo Joaquim quando em versos incendiários
cantaste a Africa distante do Congo da minha saudade do Congo de coração em África.
De coração em África ao meio-dia do dia de coração em África
com o Sol sentado nas delícias do zénite
reduzindo a pontos as sombras dos negros
amodorrando no próprio calor da reverberação os mosquitos da nocturna picadela.
De coração em África em noites de vigília escutando o olho mágico do radio
e a rouquidão sentimento das inarmonias de Armstrong.
De coração em África em todas as poesias gregárias ou escolares que zombam
e zumbem sob as folhas de couve da indiferença
mas que têm a beleza das rodas de crianças com papagaios garridos
e jogos de galinha branca vai até França
que cantam as volutas dos seios e das coxas das negras e mulatas de olhos rubros como carvões negros acesos.
De coração em África trilho estas ruas nevoentas da cidade
de coração em África e um ritmo de be bop be nos lábios
enquanto que à minha volta se sussurra olha o preto (que bom) olha um negro (óptimo) olha um mulato (tanto faz) olha um moreno (ridículo)
e procuro no horizonte cerrado da beira-mar
cheiro de maresias distantes de areais distantes
com silhuetas de coqueiros conversando baixinho à brisa da tarde.
De coração em África com as mãos e os pés trambolhos disformes
e deformados como os quadros de Portinari dos estivadores do mar
e dos meninos ranhosos viciados pelas olheiras fundas das fomes de
Pomar vou cogitando na pretidão do mundo que ultrapassa a própria cor da pele
dos homens brancos amarelos negros ou às riscas
e do coração entristece à beira-mar da Europa
da Europa por mim trilhada de coração em África;
e chora fino na arritmia de um relógio cuja corda vai estalar
soluça a indignação que fez os homens escravos dos homens
mulheres escravas de homens criança escravas de homens negros escravos dos homens
amarelos e brancos e brancos e amarelos e negros escravos sempre dos homens
e também aqueles de que ninguém fala e eu Negro não esqueço
como os pueblos os xavantes os esquimós os aínos eu sei lá
que são tantos e todos escravos entre si.
Chora coração meu estala coração meu enternece-te meu coração
de uma só vez (oh órgão feminino do homem)
de uma só vez para que possa pensar contigo em África
na esperança de que para o ano vem a monção torrencial
que alagará os campos ressequidos pela amargura da metralha e adubados pela cal dos ossos de Taszilitzki
na esperança de que o Sol há-de prenhar as espigas de trigo para os meninos viciados
e levará milho às cabanas destelhadas do último rincão da Terra
distribuirá o vinho e o azeite pelos alísios;
na esperança de que às entranhas hiantes de um menino antípoda
haja sempre uma túlipa de leite ou uma vaca de queijo que lhe mitigue a sede da existência.
Deixa-me coração louco
deixa-me acreditar no grito de esperança lançado pela paleta viva de Rivera
e pelos ciclones frescos das odes de Neruda;
deixa-me acreditar que do desespero másculo de Picasso sairão pombas
que como nuvens voarão os céus do mundo de coração em África.
(Coração em África: 124-128)

 

Bibliografia Ativa Selecionada

Tenreiro, Francisco José (1982), Coração em África. Ed. Manuel Ferreira e Prefácio de Fernando J. B. Martinho. Linda-a-Velha, África – Literatura, Arte e Cultura.

 

Bibliografia Crítica Selecionada

Adão, Deolinda (2011), “Diálogos transatlânticos: africanidade, negritude e construção da identidade”. Abril: Revista do Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF, vol. 4, nº. 7: 13-22. Consultável em https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=5616563

Araújo, Maria M. (2012), “Tenreiro, Hughes e Mandela. Uma Conversa sobre Rios”. In Avanços em Literaturas e Culturas Africanas e em Literatura e Cultura Galegas. Petar Pretov et al. (eds.). AIL – Através Editora. Consultável em https://lusitanistasail.press/index.php/ailpress/catalog/download/18/27/60-1?inline=1

Margarido, Alfredo (1980), Estudos sobre literaturas das nações africanas de língua portuguesa. Lisboa, A Regra do Jogo.

Mata, Inocência (2010), Francisco José Tenreiro – As Múltiplas Faces de um Intelectual. Lisboa, Colibri.

Secco, Carmen Lúcia Tindó (2010), “A incurável ‘fratura do exílio’ e a presença de contraditórios afetos na poética de Francisco José Tenreiro”. In Francisco José Tenreiro – As Múltiplas Faces de um Intelectual, Inocência Mata (org.). Lisboa, Colibri: 203-213.

Autor(a): Patrícia Martinho Ferreira | ORCID


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Patrícia Martinho Ferreira, "Francisco José Tenreiro", Diásporas em Português, ISBN 978-989-35462-0-8, 15 de Novembro, 2023, https://diasporasemportugues.ilcml.com/glossary/francisco-jose-tenreiro/

Verbetes de Patrícia Martinho Ferreira: Francisco José Tenreiro, Joaquim Arena,