(1913 - 1957)

Nascida em Macau a 7 de Julho de 1913, filha de pai português e de mãe macaense, Deolinda da Conceição foi uma pioneira relativamente a questões da emancipação feminina, não apenas ideologicamente, mas também na prática, o que se refletiu no modo como guiou a sua vida e garantiu a sobrevivência através do seu trabalho, tanto no ensino, como no jornalismo e na tradução.
Em 1931, após o seu casamento com Luís Gaspar Alves, fixa residência em Xangai, onde tem dois filhos. Contudo, em 1937, em fase de separação do marido, refugia-se com os filhos em Hong Kong, devido à invasão de Xangai pelos japoneses. Aí, em Hong Kong, chegou a viver num campo de refugiados, dirigiu uma escola e foi tradutora.
Após o fim da segunda Guerra Mundial regressa a Macau, onde exerce as funções de jornalista e professora, tendo em 1948 casado com António Maria da Conceição, de quem teve mais um filho, António da Conceição Júnior.
Em 1956, Deolinda da Conceição visita Portugal pela primeira vez, onde é publicado seu único livro, obra Cheong Sam, A Cabaia, elogiada por João Gaspar Simões, um dos críticos mais prestigiados da época. Neste contexto, tal como refere Seabra Pereira Cheong Sam constitui um ponto de mudança na literatura macaense, “pois estabelecia um marco de nova época na literatura macaense – e em mais do que um sentido: não só quanto ao funcionamento institucional da vida literária (em que uma mulher se assumia como escritora e enquanto autora, não diletante, intervinha no sistema de comunicação artística e nele constituía em mensagem estético-literária” (p. 183).
Com efeito, em A Cabaia, ao longo dos vinte e sete contos, é-nos retratada a sociedade macaense da época, a luta das personagens femininas, muitas delas exiladas, pela emancipação. Assim, a obra relata ainda vida das mulheres e homens chineses que sucumbiam ou lutavam contra a opressão, a pobreza extrema e as milenares superstições. Reflete-se também sobre os perigos do materialismo e os inúmeros preconceitos que a mulher chinesa sofria. Além disso, transparecem os efeitos da Segunda Guerra Mundial, que a própria autora experimentou, já que, durante a Guerra Sino-Japonesa (1937-45) foi forçada a fugir de Xangai para Hong Kong, tendo experimentado as vicissitudes do exílio que também transpõe para diversas personagens.
Um dos contos emblemáticos da tentativa de emancipação da mulher e as sequelas guerra é precisamente o que dá título à obra, Cheong Sam. Nele, deparamo-nos no, início com um homem, que sabemos, logo nas primeiras linhas, ter sido condenado ao degredo perpétuo. Parece semi-enlouquecido talvez pelo remorso e vê constantemente a cheong-sam, ou seja, a cabaia, usada pela sua mulher, por ele assassinada. Tal como refere Monica Simas, “A cabaia da mulher morta é ícone de um discurso que habilita a memória do aniquilamento; reflete aausência da voz, calada pela violência, mas ecoando no sonho, habitando a inscrição fronteiriça da realidade, interrogando os motivos da sua fatalidade” (p. 32).
A responsabilidade de toda esta desgraça é atribuída à guerra, ou seja, a uma causa extrínseca ao protagonista: “Maldita guerra! Maldita guerra, que tudo lhe levara e fizera dele um criminoso, um assassino, um pai sem coração, um homem sem raciocínio “ (Conceição 2007: 19). Por outras palavras, a guerra foi o elemento alienador e desumanizador, que provocou toda a tragédia, cujos contornos começaremos a desvendar a seguir, através duma analepse. Só então nos é revelado o nome do protagonista, A-Chung, e o facto de o seu noivado ter sido realizado por acordo e conveniência entre as duas famílias. A sua noiva, Chan Nui, insistiu em partir para o “Novo Mundo” para estudar, durante dois anos, antes do casamento, uma vez que:“Tinha aprendido a língua do Novo Mundo e admirava, pelo cinema, quanto via daquele país que parecia atraí-la com a sua vida diferente, com os seus usos e costumes e com a agitação que ela verificava no seu próprio sangue” Conceição, 2007: 21). Por conseguinte, esta postura revela a coragem, a ambição e a determinação de Chan Nui, que contrasta com o papel submisso que se esperaria da mulher neste contexto social. Ao mesmo tempo, encontra-se implícito o impulso de descoberta do “outro”, distinto e diverso, do “novo mundo”, que neste caso, será conotado com os Estados Unidos. Não deixa de ser curiosa a postura etnocêntrica de reduzir “o novo mundo” a um país ocidental, misterioso e desconhecido.
Seguidamente, é referido o regresso de Chan-Nui, amadurecida e completamente diferente do que era antes de vivenciar a experiência de contacto com o exterior, uma vez que “A jovem, que partira tímida e hesitante, regressava uma mulher perfeita, elegante, falando desembaraçadamente e de gestos firmes, segura de si e ciente da sua educação esmerada” (Conceição 2007: 21). Por conseguinte, o marido imediatamente se apercebe de que a sua noiva é completamente diferente das mulheres da sua sociedade, visto que “Era decidida, falava-lhe de igual para igual, sem servilismo, independente, tomando resoluções imediatas sobre a forma de se conduzir, de se manter na sociedade dos estranhos” (Conceição 2007:21). Por conseguinte, imersa numa realidade distante, numa cultura diferente da de origem, Chan-Nui transformou-se e emancipou-se, assistindo-se durante o desenrolar da narrativa à sua luta por manter essa emancipação num meio marcadamente “castrador” relativamente à independência e determinação das mulheres.
Assim, Chan Nui evoluiu em contacto com a cultura estrangeira, regressando como uma mulher independente e emancipada, o que não se enquadra na sociedade patriarcal e conservadora chinesa.
Na verdade, apesar de tudo, Chan-Nui esforça-se por se readaptar às regras da sociedade, pelas quais revela o seu respeito e cumprir com toda a segurança e dignidade os rituais que lhe são impostos, pois:
Com efeito, verificamos que, mais tarde, quando a família sofre as consequências da guerra sino-japonesa, o marido não consegue trabalho e a fome se abate sobre o lar, colocando em perigo a sua sobrevivência e a dos filhos. Então, neste momento de profunda crise e miséria, Chan-Nui incentiva o marido a encontrar um trabalho para sustentar a família, algo que ele não consegue ter sucesso. Então, perante a ameaça de ver os filhos morrerem à fome, ela revolta-se, vai trabalhar nos dancings da cidade, de modo a conseguir alimentar a família. No entanto, o marido, para além do profundo ciúme, sente ferido o seu orgulho e a sua dignidade, e, no âmago sua humilhação, principia a esboçar um desejo de vingança:” Neste caso, constatamos o conflito psicológico que dilacera a personagem, dividido entre o ciúme, o despeito, o orgulho ferido, a raiva por depender da mulher e a necessidade de sobrevivência. Assim, verificamos que a mediocridade e incapacidade do marido, contrastam com o brilho e poder de iniciativa da esposa.
Não obstante, a rutura e a tragédia serão impulsionadas pelo facto de Chan-Nui se deixar deslumbrar pela riqueza, quando um dia parte para acompanhar um cliente estrangeiro rico a outra cidade, sentindo-se seduzida pelo luxo daquela nova vida, que a faz esquecer da passagem do tempo, da família e das suas obrigações para com ela, das quais apenas se recorda quando lê no jornal o pedido feito pelo marido para que regresse, devido à doença de um dos filhos. Ao regressar a casa, num acesso de ciúmes, A-Chung, o marido assassina-a. Tal como preconiza David Brookshaw, esta é uma história de um conflito de valores e da emancipação feminina, no seio de uma sociedade tradicional cuja estrutura se tornou insegura devido à guerra e à necessidade de deslocamento (Brookshaw: 2002: 72) Neste conto, é fundamental além da já referida questão da emancipação feminina, as transformações provocadas por uma educação ocidental, suscetível, por vezes de incentivar o gosto por certo tipo de luxos. De salientar, uma predileção pela personagem feminina, cujo brilho, inteligência e independência contrastam com a mediocridade e, de certo modo, incapacidade do marido para ter sucesso na vida, que acaba por revelar os instintos mais primários e violentos. Neste contexto, como refere Monica Simas, “Cheong-sam” é a cabaia, que inscreve o espaço da representação em um questionamento persistente; é índice de transculturação; é também a marca do feminino, assegurando a fronteira do lar e sendo metáfora do desejo” (p. 30).
Constatamos que, de um modo geral, as personagens femininas assumem o estatuto de protagonistas nos contos de Deolinda da Conceição, representando as inquietações da autora, que por vezes se projeta nas mais diversas personagens que podem oscilar entre a mulher fatal, submissa ou até emancipada e altruísta, embora de uma forma geral cumpridora e respeitadora das tradições. Além disso nota-se uma profunda crença na educação da mulher como alavanca essencial conducente à difícil emancipação. A ideia de exílio também aflora, quer afetando diretamente algumas personagens femininas, quer indiretamente, através da partida dos seres amados.
Em suma, Deolinda da Conceição para além de constituir um marco de mudança na literatura, tendo sido a primeira autora a rasgar as fronteiras de Macau e a ser reconhecida em Portugal, empreende uma abordagem pioneira na forma multímoda como representa as personagens femininas que oscilam entre uma luta pela emancipação (na maioria das vezes silenciada pelas convenções sociais tão em voga nos anos 40-50) e a submissão e obediência às tradições.
Citações
Durante dois anos, as cartas e as fotografias de Chan Nui revalvam a transformação que se operava nela, mas os velhos não atentavam senão na sua beleza crescente e nas coisas maravilhosas que ela contava desse país distante.
A jovem que partira tímida e hesitante, regressava uma mulher feita, elegante, falando desembaraçadamente e de gestos firmes (…) ciente da sua educação esmerada.
A Chung viu-a e compreendeu que Chan Nui não seria nunca igual às mulheres que o rodeavam. Era decidida, fava-lhe de igual para igual, sem servilismo, independente, tomando resoluções imediatas sobre a forma  de se conduzir,  de se manter na sociedade dos estranhos.
Passados meses, realizou-se o casamento (…).
Bela e elegante, era com desembaraço que realizava aqueles actos impostos às noivas na China, tais como de se ajoelharem diante dos sogros, oferecendo-lhes a tradicional xícara de chá, curvarem-se, em reverência, perante os membros mais velhos das duas famílias, etc. (Conceição 2007: 21)
Gritou-lhe a sua revolta e o seu desprezo, toda a desilusão da sua vida de se ver acorrentada a um ser como ele, desprovido até de sentimentos paternais, e jurou que enfrentaria o destino, a guerra, o inferno e a própria morte para que os seus filhos não sofressem mais fome. (Conceição 2007: 24)
E, quando um dia sentiu tentações de a abraçar, viu surgir diante de si aquela cabaia que tantos conheciam e enlaçavam. Sentiu desejos de a esfarrapar, mas o arroz que ela trazia era indispensável para os filhos. (Conceição, Cheong Sam, A Cabaia 2007: 25)
Bibliografia Ativa Selecionada
Conceição, Deolinda da (2007). Sam-Cheong, A Cabaia, 5ªed. Macau, Instituto Internacional de Macau.
Bibliografia Crítica Selecionada
Brookshaw, David, “Deolinda da Conceição, a pioneer”.In http://luso-brazilianstudies.blogspot.com/2010/10/pioneer-of-womens-writing-in-macau.html
Gago, Dora Nunes (2017). “Figurações femininas nas obras de Deolinda da Conceição, Maria Ondina Braga e Fernanda Dias: os árduos caminhos do exílio e da emancipação”. Revista de Cultura de Macau, 6-17.
Pereira, José Carlos Seabra (2013), O Delta Literário de Macau, Macau, IPM.
Sena, Teresa (2010), Conceição, “Deolinda Salvado da”. DITEMA, Dicionário Temático de Macau, Volume I, Universidade de Macau, p. 394
Simas, Monica. 2016. “Podem Os Macaenses Falar? Da Subalterna à condição Especial”. Cadernos De Literatura Comparada, n. 29 (Julho). https://ilc-cadernos.com/index.php/cadernos/article/view/162.
Autor(a): Dora Nunes Gago | Ciência Vitae
 
 
 
 
					