(1963 - )

O percurso do escritor mineiro Edimilson de Almeida Pereira inscreve-se de modo singular e multifacetado na intersecção entre a criação artística e a pesquisa acadêmica, constituindo uma obra que se apresenta como um vasto projeto de investigação poética e etnográfica da diáspora africana no Brasil e no mundo lusófono. Poeta, ficcionista, ensaísta e Professor Titular de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Juiz de Fora, Pereira construiu uma trajetória biobibliográfica marcada por uma erudição que ultrapassa fronteiras disciplinares.
Sua formação abrange a Ciência da Religião, a Literatura Portuguesa e a Comunicação e Cultura, culminando em um Pós-doutorado em Literatura Comparada pela Universidade de Zurique, na Suíça. Essa sólida base intelectual confere à sua escrita uma profundidade rara, capaz de dialogar com as vertentes mais sofisticadas da teoria contemporânea e, ao mesmo tempo, enraizar-se nas tradições e oralidades afro-brasileiras. Desde a estreia com Dormundo (1985) e o volume Corpo vivido (1991), Pereira já revelava, nas palavras de Carlos Nejar, “a lâmina da poesia que reformula o universo”, uma escrita que opera “um retorno ao mais arcaico das coisas” (Nejar 1991: 13).
Essa força inaugural já anunciava o que se tornaria um dos traços centrais de sua poética: a capacidade de fazer a palavra dançar, cheia de sentidos, tensionando os limites da linguagem e da experiência. Tal gesto ressoa com a própria condição diaspórica – movimento simultâneo de ruptura e reconstrução, de dispersão e criação. Sua vasta produção, reunida em obras como Zeozório blues: obra poética I (2001) e o extenso projeto com os seguintes volumes: Lugares ares: obras poéticas 2, As coisas arcas: obra poética 3, Casa da palavra: obra poética 4, revela uma insistência temática e formal na memória, na paisagem e no corpo como arquivos vivos da história.
Nos romances Front (Prêmio São Paulo de Literatura, 2020) e O ausente (finalista do Prêmio Oceanos, 2020), essa mesma potência se expande: a narrativa ganha um tom poético e filosófico que ecoa a densidade ensaística de sua pesquisa. Mais do que os prêmios, entretanto, o que define o alcance de Pereira é o campo de investigação que o move – aquele em que se entrelaçam literatura, etnografia e religiosidade afro-brasileira.
As obras escritas em coautoria com Núbia Pereira de Magalhães Gomes – Os tambores estão frios: estudo sobre a tradição banto no ritual de Candomblé em Minas Gerais (1997) e A saliva da fala: notas sobre a poética banto-católica do Congado (2002) – são decisivas para compreender o alicerce epistêmico de sua criação. Nelas, a questão da origem, da diversidade e da dispersão dos povos bantos não é apenas um tema, mas o próprio motor de sua estética. Pereira mapeia as permanências e ressignificações das culturas africanas no Brasil, revelando como performance, oralidade e religiosidade popular se tornaram espaços de inscrição e resistência frente ao apagamento colonial. Sua literatura transforma esse mapeamento em gesto poético, tornando-se, ela mesma, vetor de dispersão de narrativas contra o discurso hegemônico da Casa-Grande – um projeto que, nas palavras do próprio autor, busca ultrapassar limites de análise crítica impostos seja por categorias estéticas, seja por fronteiras nacionais.
Essa vocação de ultrapassagem – uma incessante articulação dos trânsitos e das mediações culturais – encontra ressonância nas formulações de Paul Gilroy e Stuart Hall. Para Gilroy (2001), o Atlântico Negro não é meramente uma região geográfica, mas uma contra-cultura da modernidade, um continuum cultural e político em constante mobilidade, forjado pela “dupla consciência” do sujeito diaspórico – a tensão entre a herança africana e a experiência no Novo Mundo. A poesia de Pereira habita essa travessia, recusando a fixidez e a unidade em favor da errância e da hibridez – conceitos centrais na teorização da diáspora por Stuart Hall. Hall (2003) enfatiza que as identidades diaspóricas não são fixas, mas representam “o que nós nos tornamos” e não apenas “o que nós somos”, sendo uma questão de identidade e diferença. O Brasil, nesse contexto, é um laboratório de reconfiguração da diferença, onde as heranças africanas não apenas sobreviveram, mas moldaram a linguagem, a religiosidade e a própria nação. Pereira, ao explorar as raízes banto-católicas do Congado em Minas Gerais, oferece uma contribuição ímpar ao campo, desterritorializando o Atlântico Negro para o interior do país, onde a diáspora se reconfigura em novas formas de pertencimento e de fala.
Entre as obras de Edimilson de Almeida Pereira, o livro-poema Caderno de Retorno (2007) constitui o núcleo mais articulado desse projeto estético-político. O título remete diretamente ao Cahier d’un retour au pays natal, de Aimé Césaire, mas inverte a direção: o retorno de Edimilson é uma busca não por um país natal geográfico, mas pela raiz e errância da memória diaspórica, um movimento que se opõe ao destino, à unidade ou à fixidez. A voz poética atua como um documentarista atento à “câmera-escrita”, utilizando lentes históricas para questionar imperialismos econômicos e culturais. O poema é, portanto, uma tentativa de revisitação ativa do vestígio, no sentido que lhe atribui Christina Sharpe (2023), para quem o vestígio (wake) não é apenas o rastro deixado pelo navio negreiro, mas a condição contínua e o legado vivo da violência racial que informa o presente, persistindo nas estruturas contemporâneas. O poeta filma/escreve o passado no presente, desvendando as continuidades da opressão.
Essa revisitação começa com a imagem central da pele, que se expande de um mero marcador de cor para um complexo arquivo histórico e sensorial, rejeitando as classificações simplistas:
Pele radar que indexa / um looping / ao atabaque / um anjo / à sua queda /
Iracema / à sua novela / alvo que incinera um atirador / no teto.
(Pereira 2017: 7)
Neste primeiro excerto, a pele não é apenas a superfície, mas um radar, um dispositivo de captação e indexação da história, operando em um looping temporal que liga o atabaque ancestral (África) à queda do anjo (a instauração da lógica colonial) e à novela de Iracema (o mito fundador do Brasil, a violência fundadora da mestiçagem que apaga a presença negra). A pele-radar, ao indexar, recusa a noção de que o corpo negro é apenas um alvo, revertendo a mira ao ponto de incinerar “o atirador / no teto” – uma imagem poderosa de vigilância e opressão colonial, em consonância com a análise de Charles W. Mills (2018) sobre como o Contrato Racial estabelece um estado de dominação e de privilégio epistêmico para o branco, que é aqui poeticamente desmantelado. Ao transformar a pele em mapa e radar, Pereira reivindica uma agência corpórea e epistemológica, fazendo do corpo diaspórico um agente ativo da memória e do confronto.
O tema da pele como mutabilidade e dispersão é aprofundado, rejeitando a fixidez das categorias coloniais e a essencialização da identidade, dialogando diretamente com a crise da identidade na pós-modernidade (Hall 2006):
Pele não é o cárcere nem / o texto / o papel / a retícula / para roteiro em zoom /
quiçá um mapa que muda enquanto viaja / e se fixa quando / escorregadia / nos tece.
(Pereira 2017: 21)
Nesse trecho, a “pele-mapa” nega ser um cárcere ou um texto (uma inscrição determinista), mas se afirma como um mapa que muda enquanto viaja. Isso ecoa diretamente a crítica de Hall (2003) à identidade essencialista: a identidade diaspórica é fluida, escorregadia, e é justamente essa natureza que “nos tece”, ou seja, que constrói a nova subjetividade na diferença e na incompletude. O roteiro em zoom é a visão colonial e eurocêntrica que tenta fixar e aprisionar o corpo/texto do outro através de categorias raciais e estéticas rígidas. O poeta rejeita essa lente, optando pela mobilidade da dispersão e pela agência da auto-definição, reforçando a ideia de que a identidade é um trabalho em progresso (Hall 2006).
A busca pela ancestralidade no Caderno de Retorno é dolorosa, complexa e carregada da perda constitutiva da diáspora, tal como articulada por Saidiya Hartman (2021) em sua jornada pela rota atlântica da escravidão. O retorno de Pereira lida com o trauma da ausência e da invisibilização histórica. O que o eu-lírico busca, portanto, não é o gado, o valor de troca do corpo escravizado, mas a ancestralidade em seu aspecto mais resistente e dinâmico, uma memória que fertiliza o presente:
Estou de volta a casa não para visitar / os carneiros da minha gente /
uma vez mortos / expostos. / O que espero deles não é carne / mas raiz e errância. /
A experiência acumulada sendo / o último da classe / o único entre os outros /
o suspeito número um / a prova no fundo do poço / apodreceu para adubar minha vontade.
(Pereira 2017: 27)
A poética do retorno em Pereira é, essencialmente, uma poética da superação do trauma através da assunção da diferença e da dor histórica. O que ele procura não é a carne (o vestígio material da morte, o corpo exposto da violência do sistema escravocrata), mas a raiz e errância (a base ancestral e o movimento constitutivo da diáspora, a negação do destino). A dor da marginalização (“o último da classe”, “o suspeito número um”), que reflete a posição social historicamente imposta pelo Contrato Racial (Mills, 2018), é ressignificada: o apodrecimento da “prova no fundo do poço” – o trauma e a exclusão – serve para adubar a vontade de lutar e de escrever. A diáspora se torna, assim, um campo de força e de fertilidade, uma rearticulação da história a partir do ponto mais baixo da opressão, transformando a dor em potência criativa e política.
A recusa do discurso colonial, que perpetua a subalternidade no mundo pós-colonial, manifesta-se na desconstrução dos símbolos da opressão patriarcal e escravocrata:
Sua sombra que a fraca luz projeta recusa / a rede da casa-grande / o título a prazo do barão em débito / a cadeira del-rey / a merda da casa-grande / a dissertação elogiosa da selva / o piano / a culpa de não amar o deus imposto. (Pereira 2017: 41)
O poeta utiliza uma linguagem direta e visceral para rejeitar a totalidade do projeto colonial e suas ramificações contemporâneas. Os artefatos de luxo e poder (“rede da casa-grande”, “cadeira del-rey”, “o piano”) são equiparados à “merda da casa-grande,” demonstrando o desvalor moral e ético da estrutura que os produziu e o desprezo pela idealização romântica da escravidão. A negação se estende ao plano epistêmico (“a dissertação elogiosa da selva”, referenciando as narrativas brancas, muitas vezes estrangeiras, sobre a natureza e o povo brasileiro, como as de Spix, Martius & Company, citadas mais adiante) e religioso (“a culpa de não amar o deus imposto”), estabelecendo uma ruptura radical com o Contrato Racial (Mills, 2018) que sustentou a hierarquia social brasileira. Essa é uma poética da insubmissão que cumpre a função de evidenciar e articular os trânsitos da negritude brasileira contra as fronteiras nacionais e estéticas impostas pela matriz colonial, desvendando as “heranças de embargos” que o dia a dia ainda reabre.
A luta contra a memória oficial e o apagamento se expressa na metapoesia, que invoca o poder da palavra e da performance diaspórica como contranarrativa, uma verdadeira blitz na memória:
Contra a blitz na memória / a Memória. / Contra o desprezo ao que dançamos / a Dança. / Contra o repúdio ao que falamos / a Fala. (Pereira 2017: 52)
Nesse trecho, a poesia de Edimilson de Almeida Pereira se alinha explicitamente com o esforço de reescrita histórica. A Memória (com “M” maiúsculo) é ativada como contraponto à blitz (guerra, ataque rápido) do esquecimento ou da distorção promovida pelo discurso hegemônico. A Dança e a Fala são elevadas a instrumentos de resistência cultural, remetendo diretamente às manifestações etnográficas do Congado e do Candomblé que o poeta estudou. Dançar e falar, nesse contexto, não são meros entretenimentos, mas atos políticos de afirmação da existência e da cosmogonia africana, rejeitando o desprezo colonial que desqualificou essas formas de expressão como “folclore” ou “primitivismo”. A diáspora se torna a fonte de uma arte que é, ao mesmo tempo, política e ontológica.
A força máxima dessa articulação de trânsito e transgressão reside na figura de Exu, o Orixá que, na cosmogonia iorubá, é o senhor da comunicação, do movimento, das encruzilhadas e, poeticamente, da própria Diáspora. Exu é a personificação da fluidez e da recusa à fixidez que o projeto Diásporas em Português busca privilegiar. Ele é o mediador essencial que desmantela o binarismo entre destino e origem, entre o sagrado e o profano, entre a África e o Brasil.
Morremos pela boca, exceto Exu, / guia de Tirésias / que desacata Gregório de Matos / Macunaíma e François Villon. / Exu calibã / luva insuspeita de Shakespeare / caçador que tem em si a caça / e se irrita / preso a uma dezena de nomes. (Pereira 2017: 97)
Nesse trecho, Exu é a figura que transgride e que desacata tanto o cânone branco brasileiro (Gregório de Matos) quanto as figuras folclóricas europeias (François Villon) ou mesmo a modernidade ambígua (Macunaíma). Ao ser nomeado Exu calibã, o Orixá se associa ao personagem de A Tempestade (Shakespeare) que, segundo a crítica pós-colonial, é a alegoria do nativo escravizado e rebelde. Exu, como Calibã, utiliza a linguagem do colonizador para amaldiçoá-lo e para refazer o mundo. Essa articulação intertextual demonstra a tessitura global do Atlântico Negro (Gilroy, 2001), onde as referências circulam e se contaminam, criando novas sínteses. Exu é a própria metáfora da diáspora: o trânsito entre culturas (África-Europa-Américas, o guia de Tirésias) é mediado por uma força que é, paradoxalmente, caçador e caça, resistência e movimento. A irritação por estar “preso a uma dezena de nomes” é a luta contra a simplificação identitária, a negação do essencialismo que Stuart Hall tanto combatia: a identidade diaspórica é múltipla, é devir, é o não-fixo que desafia qualquer tentativa de captura e aprisionamento. Exu é o ponto de ebulição da lava, a força de dentro, a herança da insubmissão.
A obra de Edimilson de Almeida Pereira, e o Caderno de Retorno em particular, é um poderoso testemunho da capacidade da literatura em língua portuguesa de enfrentar o legado do colonialismo através de uma estética da errância e da diversidade. O autor utiliza a experiência do vestígio afro-brasileiro para cartografar um novo Atlântico Negro, onde a pele é um mapa vivo, o retorno é um ato de adubação da vontade, e o Orixá Exu é o intelectual orgânico que garante a fluidez e a permanência da fala diaspórica no coração da modernidade. Ao rejeitar a ideia de destino ou unidade em favor da origem, diversidade e dispersão, Edimilson de Almeida Pereira insere-se como um dos maiores poetas-ensaístas da diáspora em português no século XXI, cuja voz poética nos ensina a cerzir um país com linhas várias, mesmo que elas não se amem, mas, por não se amarem, inevitavelmente, se enovelam.
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Citações
a lâmina da poesia que reformula o universo”, uma escrita que opera “um retorno ao mais arcaico das coisas. (Pereira 1991: 13)
Pele radar que indexa / um looping / ao atabaque / um anjo / à sua queda / Iracema / à sua novela / alvo que incinera um atirador / no teto (Pereira 2017: 7)
Pele não é o cárcere nem / o texto / o papel / a retícula / para roteiro em zoom / quiçá um mapa que muda enquanto viaja / e se fixa quando / escorregadia / nos tece. (Pereira 2017: 21)
“Estou de volta a casa não para visitar / os carneiros da minha gente / uma vez mortos / expostos. / O que espero deles não é carne / mas raiz e errância. / A experiência acumulada sendo / o último da classe / o único entre os outros / o suspeito número um / a prova no fundo do poço / apodreceu para adubar minha vontade.” (Pereira, 2017:27).
“Sua sombra que a fraca luz projeta recusa / a rede da casa-grande / o título a prazo do barão em débito / a cadeira del-rey / a merda da casa-grande / a dissertação elogiosa da selva / o piano / a culpa de não amar o deus imposto” (Pereira, 2017:41).
“Contra a blitz na memória / a Memória. / Contra o desprezo ao que dançamos / a Dança. / Contra o repúdio ao que falamos / a Fala.” (Pereira, 2017:52).
“Morremos pela boca, exceto Exu, / guia de Tirésias / que desacata Gregório de Matos / Macunaíma e François Villon. / Exu calibã / luva insuspeita de Shakespeare / caçador que tem em si a caça / e se irrita / preso a uma dezena de nomes.” (Pereira, 2017:97).
Bibliografia Ativa Selecionada
Pereira, E. de A. (1985). Dormundo. Juiz de Fora, MG: Edições d’Lira.
— (1991). Corpo vivido: reunião poética. Belo Horizonte: Mazza Edições; Juiz de Fora: D’Lira.
— (2002). Zeosório blues: obra poética I. Belo Horizonte: Mazza Edições.
— (2017). Caderno de retorno (2ª ed.). Salvador: Ogum’s Toques Editora.
— (2020). Front. São Paulo: Nós Editora.
— (2020). O ausente. Belo Horizonte: Relicário Edições.
Pereira, E. de A., & Magalhães Gomes, N. P. de. (1997). Os tambores estão frios: estudo sobre a tradição banto no ritual de Candomblé em Minas Gerais. Belo Horizonte: Mazza Edições.
— (2002). A saliva da fala: notas sobre a poética banto-católica do Congado. Belo Horizonte: Mazza.
Bibliografia Crítica Selecionada
Gilroy, P. (2001). O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência (C. K. Moreira, Trad.). São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro.
Hall, S. (2003). Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG.
Hartman, S. (2021). Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão (J. L. P. da Costa, Trad.). Rio de Janeiro: Bazar do Tempo.
Nejar, C. (1991). Apresentação. In E. de A. Pereira, Corpo vivido: reunião poética. Juiz de Fora, MG: Edições D’Lira.
Mills, C. W. (2023). O contrato racial . São Paulo: Todavia.
Sharpe, C. (2023). No vestígio: negridade e existência (J. Oliveira, Trad.). São Paulo: Ubu Editora.
Autor(a): Gláucio Zani Alves | Lattes