(1983 - )

Nina Rizzi, nascida em Campinas em 1983, é historiadora, poeta, tradutora e editora. Sua trajetória acadêmica e literária desenha uma confluência singular entre o rigor da pesquisa histórica e a sensibilidade da criação poética. Formada em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), desenvolveu pesquisas junto ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), sobretudo nas áreas de história, cultura e educação, espaços em que já se manifestava seu interesse pela articulação entre memória, linguagem e experiência coletiva. Atualmente, reside em Fortaleza, onde atua como editora da revista Ellenismos e mantém um blog pessoal que disponibiliza parte de sua produção, reflexões e experimentações textuais. Essa presença em múltiplas frentes – acadêmica, literária e editorial – evidencia uma autora cuja escrita se articula com engajamento político e sensibilidade estética, ocupando um espaço de relevância crescente na literatura brasileira contemporânea.
A estreia de Rizzi em livro ocorreu em 2012, com Tambores pra n’zinga, obra que já anunciava sua vinculação à ancestralidade da mulher africana, resgatando a figura de Nzinga, rainha angolana que resistiu à colonização portuguesa. O título sugere não apenas uma evocação histórica, mas também a tentativa de reinscrever a memória da resistência africana no presente da poesia brasileira. A partir daí, a poeta construiu uma trajetória consistente, marcada por diversidade temática e formal: Caderno-goiabada (2013), um experimento em prosa-ensaística; a tradução de Susana Thénon: Habitante do Nada (2013); A duração do deserto (2014); Romério Rômulo: ¡Ah, si yo fuera Maradona! (2014); Geografia dos ossos (2014, publicado em Portugal); Quando vieres ver um banzo cor de fogo (2017); Sereia no copo d’água (2017); e, mais recentemente, Diáspora não é lar, obra que condensa sua maturidade poética e insere com contundência as questões do racismo, da memória, do pertencimento e da resistência.
Sua poesia recusa o deslumbramento formal em favor de uma escrita que combina contundência e ternura. Seus versos se dirigem às pessoas comuns, aos dramas cotidianos de sujeitos subalternizados, aos fragmentos de memória que insistem em ser ditos. Ao mesmo tempo, sua linguagem não abdica da experimentação estética, que se manifesta no trânsito entre registros, na adoção do pretuguês (Gonzalez 1984)1 como centro criativo e na constante reinvenção da língua. A escrita de Nina Rizzi é, nesse sentido, tanto política quanto estética, inscrita na tradição de poetas que transformaram a palavra em espaço de denúncia, resistência e invenção.
Para compreender a relevância de sua obra, é fundamental aproximá-la do conceito de diáspora tal como elaborado por Stuart Hall. Em seu ensaio “Pensando a diáspora: reflexões sobre a terra no exterior (Hall 2003)”, Hall recusa a visão essencialista de identidade como retorno a uma origem pura e imutável. A diáspora, segundo ele, é sempre marcada pela dispersão, pela diferença, pelo hibridismo. Em vez de unidade, a diáspora produz identidades múltiplas, fragmentadas, constituídas na tensão entre memória e presente. Como afirma Hall, a identidade cultural não é um núcleo fixo, mas um processo de constante transformação, inscrito nas relações de poder e na história da colonização, da escravidão e da modernidade global.
Essa perspectiva ilumina de modo decisivo a leitura da poesia de Rizzi. Ao intitular um de seus livros Diáspora não é lar, a poeta reconhece a impossibilidade de fixar-se numa origem redentora. A diáspora, em sua obra, não é caminho de retorno, mas condição de desterro e, simultaneamente, de criação. Como diz um de seus poemas:
diáspora não é lar
não sou neta das bruxas que não foram queimadas
minha avó branca adotou minha mãe preta
minha avó branca espancava minha mãe preta
(Rizzi 2025: 84)
A memória aqui não é celebratória: ela expõe as violências coloniais e patriarcais que estruturaram a vida de gerações. A avó branca que adota e espanca a mãe preta evidencia o atravessamento do racismo nas relações íntimas, familiares, domésticas. No entanto, ao inscrever essa memória no poema, Rizzi transforma o trauma em palavra, fazendo do silêncio histórico uma voz.
A diáspora, como ressalta Stuart Hall, não pode ser compreendida em termos de “origem” e “cópia”, “fonte” e “reflexo pálido”. Trata-se, antes, de um campo de múltiplas traduções e recriações. É nesse sentido que a poética de Rizzi se inscreve: não como recuperação de uma África perdida, mas como invenção de uma África presente, reapropriada e ressignificada na experiência brasileira. Não se trata de uma África geográfica, não se trata de Angola, Nigéria, Congo etc., mas de uma imagem, uma ideia poética de África, um lugar simbólico, conectado com a experiência diaspórica africana, com a escravatura, a travessia atlântica etc. Essa África se manifesta no ritmo, no corpo, na dança, nos orixás, na sonoridade do pretuguês. O poema “Êh lá em casa êh” é exemplo eloquente dessa reinvenção:
amalocar                       aquilombar
aquilombar amalocar
êh-hhhhh casa-êh
(Rizzi 2025: 102)
Aqui, a diáspora se converte em gesto de reconstrução. Se não há lar, inventa-se o quilombo; se não há pertencimento, produz-se comunidade. A repetição rítmica dos versos evoca a oralidade africana, o canto coletivo, o batuque dos terreiros. O poema não descreve o quilombo como lugar fixo, mas como ação: aquilombar é verbo, é prática, é resistência em movimento. A mesma força se percebe em “Canção, em lugar de tradução”: “se estou sozinha / a solidão é mulher, é preta, e é tão bonita e é além” (Rizzi 2025: 82).
A solidão, nesse contexto, não é apenas desamparo, mas condição estética e política. É o lugar da mulher negra na diáspora: isolada, violentada, mas também capaz de transformar sua experiência em beleza, em canto, em resistência. Ao afirmar que a solidão é “preta e tão bonita”, Rizzi inscreve uma contranarrativa ao discurso racista que associa a negritude à falta e à negatividade. A solidão diaspórica é, aqui, fonte de potência criativa.
Stuart Hall destaca que a diáspora deve ser pensada não como retorno a uma origem intocada, mas como processo de tradução e hibridismo. A língua, nesse processo, é central. Rizzi faz da língua portuguesa um campo de disputa, tensionando-a com palavras de origem africana, com neologismos, com o ritmo do hip-hop e da oralidade popular. O pretuguês é, em sua poética, a materialização dessa estética diaspórica: a língua do opressor apropriada, reinventada, carnavalizada. Esse gesto é visível também em “Falo de um outro futuro”:
a pertença é um beiço
o futuro não demora e tava lá dentro sereno
pra fudê
(Rizzi 2025: 109)
Aqui, o futuro não é destino, mas invenção. A pertença não é essência, mas fragmento, precariedade, improviso. O poema sintetiza o que Hall chama de identidade em processo: não algo dado, mas algo a ser constantemente produzido, negociado, reinventado.
O diálogo entre Nina Rizzi e Stuart Hall também se evidencia na centralidade da memória coletiva. Hall sublinha que as identidades caribenhas não podem ser compreendidas sem a marca das rupturas mais violentas: escravidão, colonização, genocídio. Rizzi inscreve essas rupturas em seus poemas, como quando pergunta: “afogaram minha casa e minha gente no Atlântico?” (Rizzi 2025: 84). A lembrança do navio negreiro é evocada como fantasma persistente, herança que molda o presente. Mas, como lembra Hall, a diáspora não é apenas perda: “é também criação, possibilidade de novas linguagens, novas comunidades, novas modernidades.” (Hall 2003: 38)
Em Diáspora não é lar, o trauma da escravidão e do racismo não é obliterado, mas reinscrito como fonte de invenção. A poeta recusa tanto o mito da pureza original quanto a ilusão de pertencimento nacional pleno. Sua obra reconhece a diáspora como condição moderna: viver no entre-lugar, criar formas de vida nas frestas, inventar futuros no presente.
Além disso, sua poesia dialoga com outras vozes da diáspora. Rizzi convoca Nina Simone e Elza Soares, celebra artistas visuais como Manuela Navas e Edson Ikê, inscreve a sonoridade do hip-hop, o batuque dos terreiros, os saberes das mais velhas. Essa rede de referências evidencia o caráter transatlântico de sua poética, em sintonia com o que Paul Gilroy chamou de Atlântico Negro (Gilroy 2012: 430): um conjunto cultural irredutivelmente moderno, excêntrico, instável e assimétrico, que escapa à lógica estreita das simplificações étnicas.
A poesia de Rizzi ultrapassa as fronteiras nacionais e recusa os limites de uma identidade estritamente brasileira. Sua escrita se insere em um movimento mais amplo da diáspora negra, no qual o Brasil se revela como parte de uma constelação maior, tecida por fluxos, memórias e vozes que atravessam o Atlântico e reconfiguram, incessantemente, os sentidos de pertencimento e de criação.
De um lado, sua poesia denuncia as permanências do racismo estrutural, as violências de gênero e a marginalização de corpos negros. De outro, sua obra aponta para futuros possíveis, nos quais o pertencimento não se funda na essência, mas na prática, na comunidade, na solidariedade. É nesse sentido que sua poesia é política: não apenas porque denuncia, mas porque cria.
Nina Rizzi inscreve a diáspora como movimento de resistência e reinvenção. Sua obra nos lembra que não há retorno a uma origem pura, mas há sempre a possibilidade de reinventar linguagens, criar lares provisórios e inventar comunidades. A diáspora não é lar, mas pode ser canção, dança, poema, quilombo. É nesse espaço que a poesia de Rizzi se instala, convidando-nos a repensar nossas próprias formas de pertencimento.
Rizzi é uma poeta que, com contundência e delicadeza, articula estética e política, memória e invenção, dor e resistência. Sua obra ecoa as vozes da diáspora negra no Atlântico, inscrevendo-se numa tradição que vai de Nzinga a Elza Soares, de Fanon a Stuart Hall, mas que também é profundamente singular, marcada pela experiência cotidiana do Brasil periférico e pela reinvenção poética da língua.
A literatura de Nina Rizzi nos ensina que, diante da ausência de lar, cabe inventá-lo; diante da solidão, cabe cantá-la; diante do racismo, cabe resistir. A diáspora, em sua poesia, não é destino, mas travessia. E, nessa travessia, encontramos a possibilidade de reinventar não apenas a linguagem, mas também a vida.
Citações
diáspora não é lar
não sou neta das bruxas que não foram queimadas
minha avó branca adotou minha mãe preta
minha avó branca espancava minha mãe preta.
(Diáspora não é lar: 84)
amalocar                   aquilombar
aquilombar amalocar
êh-hhhhh casa-êh.
(idem: 102)
se estou sozinha  a solidão é mulher, é preta, e é
tão bonita e é além.
(idem: 82)
a pertença é um beiço
o futuro não demora e tava lá dentro
sereno pra fudê.
(idem: 109)
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1 “Pretuguês” é um termo cunhado pela intelectual negra Lélia Gonzalez para descrever a influência das línguas africanas no português falado no Brasil. É uma forma de reconhecer a africanização da língua portuguesa no Brasil e a resistência cultural presente na fala cotidiana. Lélia Gonzalez, com sua atuação como intelectual e ativista, propôs o termo “pretuguês” para expressar a influência das línguas africanas no português falado no Brasil. Essa influência não se limita a algumas palavras, mas também abrange a entonação, o ritmo e a própria estrutura da fala. Gonzalez argumenta que o “pretuguês” é uma forma de resistência cultural e que a língua falada no Brasil não é apenas uma variante do português europeu, mas sim um idioma com suas próprias características e origens. O conceito de “pretuguês” é um conceito importante para discutir a interseccionalidade no contexto brasileiro, a influência da diáspora africana na cultura e a importância da experiência negra na construção da identidade brasileira. Além disso, o termo é utilizado em diversas áreas, como no campo do direito, para discutir a construção de um sistema jurídico mais inclusivo e sensível às diversas realidades sociais e culturais. (Gonzalez, L. (1984). Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, 2, 223–244).
Bibliografia Ativa Selecionada
Rizzi, Nina (2012), tambores pra n’zinga. Rio de Janeiro, Editora Multifoco
— (2013), caderno-goiabada. Fortaleza, Edições Ellenismos.
— (2014), A duração do deserto. São Paulo, Editora Patuá.
— (2015), Romério Rômulo: ¡Ah, si yo fuera Maradona!. Sabará, MG, Edições Dubolsinho.
— (2016), Geografia dos ossos. Lisboa, Editora Douda Correria.
— (2017), Quando vieres ver um banzo cor de fogo. São Paulo, Editora Patuá.
— (2017), Sereia no copo d’água. São Paulo, Edições Jabuticaba.
— (2025), Diáspora não é lar. Rio de Janeiro, Pallas.
Bibliografia Crítica Selecionada
Gilroy, Paul (2012), O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo, Editora 34.
Gonzalez, L. (1984), Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, 2: 223–244.
Hall, Stuart (2003), Pensando a diáspora: reflexões sobre a terra no exterior, in Hall, Stuart, Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, Editora UFMG: 26-49
Silva, L. H. O., & Xavier, R. C. L. (2018), Pensando a Diáspora Atlântica. História, 31: 1-11. Consultável em: https://doi.org/10.1590/1980-4369e2018020
Autor(a): Gláucio Zani Alves | Lattes