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Verônica Antonine Stigger

Passagens:

(1973- )

Verônica Stigger figura como uma das vozes mais proeminentes da ficção brasileira contemporânea: com textos curtos e ferozes e sob um olhar arguto e afiado, a autora exercita uma escrita que recorre, frequentemente, a uma estética fragmentária e visual. Justamente por isso, pode-se dizer que Stigger é adepta das formas breves, sobretudo, do conto, embora, em suas composições ficcionais, a mescla de gêneros textuais diversos seja uma característica que contribua para um procedimento literário experimental e híbrido.

Atenta e curiosa, a autora apresenta repertório de interesses diversificado, de modo a conjugar, à escrita criativa, reflexões teóricas, antropológicas e ensaísticas. Escritora, professora, crítica e curadora de arte, Stigger já publicou mais de dez obras, sendo que sua estreia na literatura se deu com o livro de contos O trágico e outras comédias, editado, em Portugal, em 2003, e, no Brasil, em 2004. Da produção contística, destacam-se ainda: Gran cabaret demenzial, de 2007, Os anões, de 2010, Sul, de 2016, e Sombrio Ermo Turvo, de 2019. Além destas, a autora escreveu duas obras para crianças – Dora e o sol, de 2010, e Onde a onça bebe água, em coautoria com Eduardo Viveiros de Castro e publicada em 2015, além de, até o momento, um único romance, Opisanie świata, de 2013, obra que lhe rendeu os importantes Prêmio Açorianos de Literatura para Narrativas Longas, Prêmio Machado de Assis, da Biblioteca Nacional, Prêmio São Paulo de Literatura, na categoria estreante para autores com mais de 40 anos, e o terceiro lugar no Prêmio Jabuti de 2014.

Descendente de alemães e italianos, a temática da migração não recebe, no entanto, ênfase em sua obra, a qual, se brinca com elementos autobiográficos, é sempre aos moldes da autoficção e da paródia, como faz nos contos “O livro”, que integra Sombrio Ermo Turvo, e “O coração dos homens”, inserido em Sul, por exemplo. Assim, chama a atenção que seu único romance publicado configura-se como uma espécie de narrativa de viagem, na qual os deslocamentos transnacionais e as trocas multiculturais são evidenciados.

Opisanie świata – título polonês que, por si só, já apresenta o caráter multicultural da obra – estabelece, como fio condutor da trama, a história de Opalka, um polonês que descobre, por meio de uma carta, que possuía um filho adulto, Natanael, convalescente de uma doença desconhecida. Moribundo, o filho escreve ao pai, pedindo-lhe que fosse até Manaus, onde residia, pois nutria o desejo de conhecê-lo antes da morte que se mostrava iminente. De Varsóvia, o circunspecto personagem parte para Hamburgo, importante cidade portuária no norte da Alemanha, com destino à América do Sul, mais especificamente à Amazônia brasileira. Acompanha-o nessa viagem um “tipo atarracado”, Bopp, brasileiro descrito como um sujeito alegre e afeito à amizade, embora invasivo e intrometido, ratificando o estereótipo desse povo.

O centro da narrativa gira em torno, pois, dessas travessias: primeiro, no trem, da Polônia à Alemanha, onde juntam-se aos personagens supramencionados um russo e uma italiana; depois, no navio, da Alemanha à “desesperadamente verde” (119) Amazônia, na companhia de pessoas das mais diversas nacionalidades: andaluzas, um casal de brasileiros, um uruguaio e um alemão. Desse grupo merece destaque a figura do uruguaio Curto Chivito, que “corre o mundo surrupiando pequenos objetos dos navios nos quais navega” (72). Seu objetivo é montar um museu – “o Museu do Homem em Trânsito” (73) –, por isso não considera suas ações ladroeiras como um roubo, mas como uma apropriação (cf. 73).

Curto Chivito espelha, de certa forma, a própria Stigger, já que esta também recorre à técnica da apropriação, ao “surrupiar” criações alheias. Em Opisanie świata, a autora se apropria dos nomes do pintor polonês Roman Opalka e do poeta modernista brasileiro Raul Bopp para identificar seus personagens; insere em sua narrativa mitos amazônicos e fragmentos textuais de outros autores de maneira indiscriminada; recorre a histórias pessoais e alheias… Com esses fragmentos, ela também vai montando o seu “Museu do Homem em Trânsito”, ou a sua “descrição do mundo” (tradução para o português do título polonês), os quais, associados a fotografias, anúncios publicitários, pequenas advertências, compõem o seu livro.

É, pois, por meio desses fragmentos e imagens que a autora reconstitui o percurso da viagem empreendida por Opalka e Bopp, ressignificando noções como fronteira e pertencimento. No texto “A catástrofe do turista e o rosto lacerado do modernismo”, o professor Raúl Antelo afirma que “toda viagem, além de deslocamentos e transferência, pressupõe também desordem dos sentidos herdados” (27). O romance de Stigger é, nesse sentido, um livro de viagens, que narra um deslocamento espacial e cultural, pela junção de culturas distintas, pelo esvaziamento de sentidos impostos, pela desordem instaurada a partir dessa coexistência, a qual, por sua vez, culminará em novos sentidos. O encontro entre os personagens da obra expande, assim, as próprias noções de território e de pertencimento, ao situar a viagem e o trânsito como condições necessárias para as ideias de valorização e de retorno do/ ao lar.

Numa das diversas anedotas que Bopp conta a Opalka, destaca-se uma, na qual o brasileiro narra uma instigante visita que recebera de uma senhora misteriosa quando estava na floresta amazônica. Diante da pergunta da mulher se ele era daquele lugar, Bopp disse que estava viajando a passeio: “Falei que adoro viajar, que adoro conhecer lugares diferentes. Ela perguntou então por onde eu tinha andado. Quando lhe contei do Sul e da região de onde vinha, dos países vizinhos que visitei, do Norte, do Nordeste, das capitais onde vivi, dos lugares da Europa em que estive […]” (41), ela declarou, chamando a atenção: “é preciso voltar. Fique um ano, dois, três. Mas volte. Vá e volte. É preciso saber voltar.” (42).

A viagem empreendida por Opalka é de retorno, não à terra de origem, mas àquela onde esteve pela primeira vez quando jovem e onde deixou um filho fecundado na barriga de uma mulher. Opalka retorna, então, pela segunda vez à Amazônia: desta vez ao encontro de um filho, ressignificando, talvez, os laços que estabelecera com o Brasil; afinal não voltava para uma terra estranha, na qual só poderia receber o epíteto de estrangeiro, voltava para o local de origem do filho.

Stigger propõe, pois, uma ressignificação das noções de identidade e de pertencimento. Se pátria, do latim patria, associa-se a pater, pai, e, nessa lógica, terra pátria estaria associada ao lugar de origem dos pais (ou do pai); no caso do romance em análise pátria é a terra do filho, metonímia de um povo miscigenado e múltiplo como é o brasileiro. Contudo, quando finalmente chega a Manaus, Opalka depara-se com um duplo sentimento de vazio: primeiro, pelas mudanças e degradações da cidade que conheceu na juventude e pela qual nutria laços e memórias afetivas; depois, pela morte do filho, ratificando, mais uma vez, sua condição de estrangeiro. O deslocamento de Opalka, a princípio, voluntário, desejoso de conhecer o filho convalescente, torna-se, em seguida, compulsório: diante da eclosão da Segunda Guerra Mundial, o polonês se viu sem uma terra para a qual retornar – a Polônia havia sido tomada pela Alemanha nazista –, de modo que o deslocamento altera-se em imigração para, finalmente, transmutar-se em atividade criativa.

Após o enterro de Natanael, Bopp presenteia o amigo com um caderninho preto e o aconselha: “Serve para fazer anotações. Para que o senhor escreva o que passou. Ajuda a superar. E a não esquecer. A gente escreve para não esquecer. Ou para fingir que não esqueceu” (Stigger 2018: 145). Diante dessas palavras, ou ainda, diante da constatação de que “talvez a gente só escreva sobre o que nunca existiu” (145), Opalka reconhece na página em branco a “terra” que o acolheria e, numa chave metalinguística, inicia a escrita de um romance sobre Bopp.

Se o deslocamento marca o enredo do romance da escritora brasileira Veronica Stigger, ele também é evidenciado em seu procedimento estético, que expande fronteiras, deslocando-se do literário para o não literário e para as outras artes, da realidade para a representação, e vice-versa, numa proposta que aponta, por um lado, para o desmesurado desígnio de encerrar a totalidade em um livro, e, por outro, para uma estética fragmentária, do mínimo e do nada, que só poderia alimentar-se por estar continuamente em trânsito.

 

Citações

“– Agora me deu saudade – disse Bopp, voltando-se para Opalka. – Às vezes, quando acordo no meio da noite, sinto o cheiro da mata. Não interessa onde eu esteja, sinto o cheiro da mata. Mas a impressão passa logo. Dura muito pouco, o suficiente para me levar de volta à selva. Eu não sou de lá, mas sinto uma imensa falta da mata, daquelas terras do sem fim. Se eu pudesse escolher um lugar que fosse meu, só meu, escolheria a Amazônia. Escolheria minha rede entre as árvores, a rede feita das fibras do buriti.” (Opisanie świata: 40)

“É difícil fazer as pessoas entenderem que é possível viajar com o máximo de conforto e segurança nas áreas mais desenvolvidas do continente sul-americano. Os serviços ao longo das rotas mais frequentadas são tão bem organizados quanto os da Europa. Há hotéis de primeira classe em todas as principais cidades, decorados com o costumeiro refinamento moderno. As viagens por vapor, trem ou avião podem ser tão luxuosas na América Latina quanto em qualquer outro lugar no mundo. Mesmo ao longo das rotas menos conhecidas, os eventuais toques primitivos servem para acentuar o prazer do visitante e não para interferir em seu conforto.” (idem: 45)

“Ninguém lembrava mais quem entrara arfante na sala de jantar gritando que havia uma sereia lá fora. Nem em que língua o anúncio fora feito. Mas não havia como esquecer o rebuliço que a notícia provocara. Mesmo sem terem terminado suas refeições, todos se levantaram de suas mesas e se puseram a falar ao mesmo tempo. As mulheres tentaram conter os maridos, algumas em prantos. Não queriam que eles fossem levados pelo canto da sereia. Mas não adiantou. Os homens foram os primeiros a debandar […]. Todos olharam para a direção apontada. Com o balanço das ondas, a massa se aproximou do navio. O imediato lançou luz sobre ela. Não era uma sereia. Era um cadáver. […]. A mulher não tinha mais olhos nem nariz, e seus lábios – surpreendentemente carnudos embora enrugados – formavam um círculo perfeito, como se ela, ao morrer, estivesse entoando a nota final de uma canção.” (idem: 75-78)

“Prezada tripulação,
pedimos a atenção de todos para fato de extrema importância que se dará no dia de amanhã. Estimamos que, algumas horas depois do pequeno almoço, nosso navio cruzará a linha do Equador. Como cremos ser de conhecimento das senhoras e dos senhores, esse é um momento solene em que devemos adotar cuidados especiais. Se a passagem não for realizada com a cautela devida, corre-se o risco de a linha vir a se enrodilhar na quilha ou no leme, provocando uma parada violenta da embarcação e consequentemente indesejáveis quedas da tripulação. Estejam atentos!
Cordiais saudações
do Comandante Egon Schild” (idem: 98)

“Bopp será sempre um desses sujeitos cuja vida é muito maior que a obra. Quando acontecia num lugar, era sinal de partida imediata. Tinha um cata-vento na cabeça e botas de sete léguas.
– Aonde vais, Bopp?
– Vou ali e já volto.
Ali: expressão das distâncias. Já: eliminação do tempo. E partia Bopp mais uma vez, para além dos limites comuns, para os longes.” (idem: 146)

 

Bibliografia Ativa Selecionada

Stigger, Veronica (2007), Gran Cabaret Demenzial. São Paulo, Cosac Naify.

— (2007), O trágico e outras comédias, (2a edição), Rio de Janeiro, 7Letras.

— (2010), Dora e o sol. São Paulo, Editora 34.

— (2016), Sul. São Paulo, Editora 34.

— (2018), Os anões. São Paulo, SESI-SP.

— (2018), Opisanie Swiata. São Paulo, SESI-SP.

— (2019), Sombrio Ermo Turvo. São Paulo, Todavia.

Stigger, Veronica / Castro, Eduardo Viveiros de Castro (2023), Onde a onça bebe água. Rio de Janeiro, Bazar do Tempo.

 

Bibliografia Crítica Selecionada

Antelo, Raúl (2007), “A catástrofe do turista e o rosto lacerado do modernismo”, in Antelo, RAUL / Camargo, Maria Lúcia de Barros, Pós-Crítica. Florianópolis, Letras contemporâneas: 27-48.

Ferraz, Bruna Fontes (2020), “A estética abjeta de Veronica Stigger”. Revista Estudos Linguísticos e Literários, nº 66 (2020): s/p. Disponível em https://periodicos.ufba.br/index.php/estudos/article/view/36092

— (2021), “O conto autoficcional de Veronica Stigger”. Revista Letras de Hoje, nº 2 (2021): s/p. Disponível em https://periodicos.ufba.br/index.php/estudos/article/view/36092

Süssekind, Flora (2013), “Objetos verbais não-identificados”. Prosa & Verso, Jornal O Globo: s/p n. Disponível em https://blogs.oglobo.globo.com/prosa/post/objetos-verbais-nao-identificados-um-ensaio-de-flora-sussekind-510390.html

Autor(a): Bruna Fontes Ferraz | ORCID


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Bruna Fontes Ferraz , "Verônica Antonine Stigger", Diásporas em Português, ISBN 978-989-35462-0-8, 9 de Abril, 2024, https://diasporasemportugues.ilcml.com/glossary/veronica-antonine-stigger/

Verbetes de Bruna Fontes Ferraz : Verônica Antonine Stigger, Bernardo Kucinski,